ÉPOCA
26/04/2010
Elas tiveram um AVC antes dos 30 anos, e sobreviveram. O que é preciso saber para se proteger da doença que mais mata no Brasil
A engenheira Fernanda Tescarollo, de 33 anos, a moça de vestido preto na foto ao lado, é um exemplo da atual geração de mulheres superpoderosas. Perfeccionista, independente, duas vezes divorciada, progrediu rápido na profissão graças à combinação de trabalho duro e ambição. Ainda hoje, tem várias ambições. Quer voltar a lavar o rosto com as duas mãos. Quer ser capaz de imitar o Cristo Redentor, com os braços bem abertos, para corresponder a um abraço. Paulistana, mas apaixonada pelo Rio de Janeiro, quer se equilibrar sobre o salto alto e voltar a sambar na quadra da Mangueira. Exatamente como fazia até 2008, quando um acidente vascular cerebral (AVC) a obrigou a parar tudo e a rever tudo. "Se você não aprende a parar, a vida te para", diz.
Fernanda tomava PÍLULA anticoncepcional desde os 16 anos. Além disso, tinha crises frequentes de enxaqueca. Três vezes mais comum em mulheres, a enxaqueca aumenta o risco de derrame. Assim como a PÍLULA. Na véspera do AVC, estava com dor de cabeça. Fernanda é funcionária de uma multinacional que fabrica lanternas e faróis para a indústria automobilística nacional e vivia um período de forte pressão. Tomou um analgésico e foi dormir. De manhã, continuava com dor. Enquanto se trocava para ir trabalhar, despencou no quarto. Sofreu um AVC extenso na região do lobo temporal direito. Os médicos precisaram submetê-la a uma cirurgia delicada. Uma parte da calota craniana foi retirada para que o cérebro tivesse espaço para inchar. Se isso não fosse feito, o edema cerebral aumentaria a pressão intracraniana e Fernanda morreria. Só depois de dois meses, a calota craniana foi recolocada. "Diante da gravidade do caso, a recuperação de Fernanda foi maravilhosa", diz o neurologista Marcelo Annes, do Hospital Albert Einstein, em São Paulo.
Em 2008, o AVC provocou 97 mil óbitos no Brasil.
Ele mata mais que infarto, violência e acidentes
Fernanda faz parte de um grupo pouco conhecido de vítimas do AVC: o das mulheres jovens. Nos últimos cinco anos, 32 mil mulheres de 20 a 44 anos foram internadas nos hospitais do SUS por causa de AVC. Entre os homens da mesma faixa etária, houve 28 mil internações por AVC. A diferença é de 14%. Em todos os outros grupos etários (até os 19 e depois dos 50 anos), mais homens receberam tratamento. A partir dos 80 anos a situação voltou a se inverter. Como as mulheres são mais longevas, houve mais tratamento em pacientes do sexo feminino.
Na verdade, o total de jovens vitimadas pela doença pode ser ainda maior. Não se sabe quantas foram atendidas na rede privada e quantas simplesmente não receberam tratamento. Parte dos casos de AVC na juventude e na meia-idade é explicada pela exposição, cada vez mais precoce, a fatores de risco como hipertensão, colesterol alto, obesidade, diabetes. Isso ocorre em ambos os sexos. Mas existem situações capazes de aumentar o risco de AVC pelas quais só as mulheres passam. Eis as principais.
Uso de PÍLULA anticoncepcional
Na maioria das mulheres, a PÍLULA é segura. Se não fosse assim, todos nós conheceríamos alguma moça que teve um AVC depois de tomar anticoncepcional. Mas as que usam esse tipo de contracepção precisam saber que os hormônios aumentam a capacidade de coagulação do sangue. O mesmo pode ocorrer quando a mulher faz reposição hormonal na menopausa. Quem toma PÍLULA ou faz reposição hormonal está mais sujeita a sofrer de trombose (formação de coágulos no interior de um vaso sanguíneo). E a trombose pode levar ao AVC. Algumas condições genéticas favorecem a ocorrência desse problema. Muitas vezes, porém, o AVC sofrido por uma mulher jovem é o primeiro da família. Foi o caso da engenheira Fernanda. "Em 99% dos casos, as moças não sabem que têm predisposição genética", diz a neurologista Gisele Sampaio Silva, do Hospital Albert Einstein.
A combinação de PÍLULA e cigarro eleva em oito vezes o risco de AVC. O sangue dos fumantes torna-se mais propenso à formação de coágulos e a nicotina também enrijece as artérias que irrigam o cérebro. Logo, mulheres que fumam não devem tomar PÍLULA. Quantas sabem disso? "Muitas fumam e não contam ao ginecologista", diz a neurofisiologista Maristela Costa, do Hospital do Coração (Hcor), em São Paulo. O inverso também é verdadeiro. Muitos médicos receitam PÍLULA e não perguntam se a mulher fuma.
A gerente de produto Amanda De Tommaso Oliveira, de 31 anos, fumava desde os 15. Aos 27 anos, consumia um maço por dia e não tomava PÍLULA. Para tentar reduzir um cisto no ovário, o ginecologista receitou-lhe um anticoncepcional. Após dez dias de uso, Amanda teve um AVC. Estava em casa, assistindo à TV, quando o braço esquerdo começou a ficar pesado. O desespero aumentou quando Amanda tentou pedir ajuda à irmã Isabela. Os pensamentos fluíam, mas ela era incapaz de pronunciar qualquer palavra.
Amanda sofreu um AVC pequeno na região frontal do cérebro, no lado direito. Passou três dias no hospital. Logo nas primeiras horas, a fala e os movimentos foram voltando. Desde o derrame, nunca mais colocou um cigarro na boca. Hoje leva vida absolutamente normal. Mas a experiência deixou marcas profundas. "O AVC não estava no meu script, mas me ensinou a valorizar cada instante", diz Amanda. Em vez de pensar naquilo que quer ter, pensa no que já tem. "Tenho casa, família, amigos e pernas que me levam aonde eu quero. Já tenho tudo."
Gordura abdominal
Novas evidências sugerem a existência de outro fator que torna as mulheres mais suscetíveis ao AVC: o acúmulo de gordura na região da cintura. Em fevereiro, um estudo apresentado na reunião anual da American Stroke Association chamou a atenção para esse fato. Na faixa etária dos 45 aos 54 anos, o AVC já é duas vezes mais comum em mulheres do que em homens nos Estados Unidos. A conclusão foi baseada nos dados de mais de 2 mil participantes da pesquisa nacional sobre saúde e nutrição realizada em 2005 e 2006. "Nossa hipótese é que a gordura abdominal (mais comum nas mulheres) esteja aumentando o risco de AVC entre elas", disse a ÉPOCA a neurologista Amytis Towfighi, da University of Southern California, em Los Angeles. A barriga eleva o risco de diabetes, hipertensão e colesterol alto. Três fatores que contribuem para a ocorrência dos derrames. A pesquisa de Amytis revelou que 62% das mulheres nessa faixa etária tinham obesidade abdominal. Nos homens, o índice foi de 50%. A pesquisadora suspeita que a incidência de AVC tenha aumentado também nas mulheres com menos de 35 anos. "Pretendemos começar esse estudo em breve", diz.
A enxaqueca é três vezes mais comum nas mulheres. Ela é um fator de risco para o AVC, principalmente quando ocorrem dormência e sintomas visuais (auras). Quando a mesma paciente apresenta vários fatores de risco, a situação é ainda mais preocupante. Nas mulheres que têm enxaqueca, fumam e tomam PÍLULA, o risco de AVC é 22 vezes mais elevado. Os neurologistas estão cada vez mais vigilantes quando encontram pacientes com esse perfil. "Antigamente eu dizia para a moça parar de fumar ou parar de tomar PÍLULA", diz Antonio Cezar Galvão, do Hospital Nove de Julho. "Hoje, mando parar de fazer as duas coisas."
Há 24 anos, a funcionária pública Célia Regina Dalseno cuida de suas emoções para ser capaz de conviver com as limitações impostas pelo AVC. Quando o derrame transformou sua vida, Célia era uma menina de 23 anos. Fumava, tinha três empregos (era professora) e cursava duas faculdades. Tinha acabado de terminar um noivado. "Queria mostrar que era poderosa, mas o que estava fazendo era um suicídio silencioso", diz. Um dia, despencou sobre a carteira de um aluno da 5ª série. Foi levada ao hospital, mas o atendimento demorou. Era a Copa do Mundo de 1986. Os funcionários estavam em outra sintonia.
Enquanto aguardava na maca, Célia percebia as consequências do derrame. O braço esquerdo dobrou para nunca mais voltar ao normal. A face ficou paralisada. A fala ficou comprometida. Célia achou que nunca mais fosse conseguir ser compreendida pelos alunos. Estava enganada. Voltou à mesma sala de aula. Em alguns momentos, ela ensinava. Em outros, os alunos eram seus professores. Soletravam as palavras e guiavam Célia na pronúncia. "A fala é o elo de comunicação com o mundo. Meus alunos me deram a oportunidade de não perdê-la", diz. Aos 47 anos, Célia é assistente social do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.
Gravidez
A maternidade torna a mulher mais suscetível ao AVC. Durante a gestação, a quantidade de sangue no organismo aumenta alguns litros. Nos primeiros meses depois do parto, o sangue torna-se mais coagulável. Podem surgir trombos nas pernas ou no cérebro. Uma doença hipertensiva que acomete 5% das grávidas (chamada de pré-eclâmpsia) também contribui para a ocorrência de AVC nessa fase da vida. "A mulher pode ter um pico de hipertensão, e ele pode provocar o AVC", diz a neurologista Gisele Sampaio Silva, do Hospital Albert Einstein.
Hipertensão
É a principal causa de AVC em homens e mulheres de qualquer idade. Uma das melhores formas de preveni-la é reduzir o sal na alimentação. Um estudo publicado recentemente no New England Journal of Medicine revelou o impacto que essa mudança simples tem sobre a saúde. Pesquisadores da Universidade da Califórnia concluíram que um esforço nacional que resultasse na redução diária de apenas 3 gramas de sal seria capaz de evitar no mínimo 60 mil derrames por ano.
A bancária Gislaine Gonçalves Babler, de 31 anos, já é hipertensa. Sofreu um AVC na região frontal esquerda do cérebro, há dois anos. Tomava PÍLULA anticoncepcional, hábito que abandonou naquele mesmo dia. Estava no trabalho quando sentiu uma pontada forte no lado esquerdo da cabeça. Em segundos, começou a sentir formigamento no lado direito do corpo. Tentou caminhar e já estava sem coordenação motora. Compreendia o que as pessoas diziam, mas tinha dificuldades para articular as palavras. Gislaine foi levada rapidamente ao hospital. No dia seguinte, não conseguia sair da cama sem ajuda. "O pior do AVC é a imprevisibilidade", diz. Passado o susto inicial, Gislaine decidiu se dedicar com afinco à fisioterapia. Dez dias depois do AVC, voltou a trabalhar. Para superar as consequências do AVC, são necessários grandes investimentos - emocionais e materiais.
Em 1986, foi lançada a droga injetável alteplase, a única capaz de dissolver trombos e reduzir os danos do AVC. Quando os doentes a recebem em até quatro horas e meia depois do AVC, o número de pessoas sem sequelas aumenta 30%. Para esse tratamento, chamado de trombólise, o paciente pode precisar de um a dois frascos do remédio. O custo varia de R$ 1.700 a R$ 3.500. Vinte e quatro anos depois do lançamento do medicamento, poucos doentes têm acesso a ele no Brasil. A maioria dos planos de saúde paga o remédio porque já percebeu que o custo-benefício é favorável. Um conveniado com menos sequelas dá menos despesas. No SUS, poucos serviços oferecem o tratamento. O valor pago pelo Ministério da Saúde pela internação do paciente com AVC (R$ 463) não é suficiente para cobrir a trombólise.
"No tratamento do AVC, o Brasil está muito atrasado em relação ao que se faz no mundo. É estranho que a principal causa de morte não seja prioridade", diz Sheila Cristina Martins, neurologista do Hospital das Clínicas da UFRGS, em Porto Alegre, e coordenadora da Rede Brasil AVC, uma ONG que reúne os principais especialistas no assunto. Procurado, o Ministério da Saúde respondeu que não está convencido do benefício da trombólise. "Ela reduz o risco de sequela, mas aumenta o risco de sangramento. Se aumenta o sangramento, pode aumentar a mortalidade", diz Maria Inez Gadelha, diretora de atenção especializada do Ministério da Saúde. O risco de sangramento cerebral existe. Segundo Sheila, é de 5%, mas os estudos não demonstraram aumento da mortalidade. "Se os profissionais forem bem treinados para aplicar esse tratamento, não há a menor dúvida sobre o benefício dele", diz Sheila.
A trombólise não é tudo o que o Brasil poderia fazer para melhorar a condição das vítimas do AVC. Mesmo sem essa medicação, existem cuidados básicos que, sozinhos, já são capazes de diminuir a mortalidade em 18% e a dependência de outras pessoas em 25%. Quando o paciente chega ao hospital, é preciso evitar que a pressão arterial fique muito alta ou baixa. É preciso evitar que tenha febre e que os níveis de glicose subam ou caiam demais. Isso não costuma ser feito. "Em 80% dos hospitais do Brasil, esses cuidados mínimos não existem", diz Sheila. "Sem a trombólise, o médico acha que não tem nada a fazer. Dá um AAS infantil (anticoagulante) e deixa o paciente no corredor." Se quiser evitar que isso continue a acontecer, o Ministério da Saúde terá de organizar um mutirão de treinamento e enfrentamento do AVC.
Diante de tudo de ruim que poderia ter acontecido, as mulheres retratadas nesta reportagem são privilegiadas. Amanda diz ter descoberto que ir à padaria tem algo de mágico. Gislaine expressa sua fé em Deus, trabalha com prazer e vive o presente. Célia deseja encontrar um companheiro. "Ainda sou mulher. Queria poder encostar a cabeça no peito de um homem, namorar, comer pipoca." Fernanda progride na fisioterapia e está pronta para estrear o carro novo, adaptado para pessoas que dirigem apenas com a mão direita. Para se proteger da impaciência alheia, colou um adesivo de deficiente físico no vidro traseiro, mas pretende retirá-lo em breve: "Vai ser só por um tempo. Por pouco tempo".
Cortesia: Clipping Bem Fam 26/04/010)
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