Excelente artigo sobre o recuo de financiamentos para o fundo global. Importante a reflexão sobre qual deve ser o papel do Brasil e dos Brics nesse momento.
Parem as mortes, não o financiamento - 19/01/2012
Valor Econômico - SP - OPINIÃO
Unni Karunakara
Quando o Fundo Global de Combate à Aids, Tuberculose e Malária anunciou que iria cancelar sua nova rodada de financiamentos devido à escassez de recursos, eu senti como se tivessem dado um soco na minha cara - e na de milhares de profissionais de saúde de Médicos Sem Fronteiras (MSF).
A notícia de que os países doadores deixaram de lado seu compromisso com o Fundo Global veio no pior momento possível, após anos de trabalho duro e dos recentes avanços científicos, que trouxeram a esperança de frear essas três doenças, responsáveis pela morte de milhões de pessoas todos os anos.
Os programas de tratamento do MSF são financiados principalmente por doadores individuais privados. Os Ministérios da Saúde, no entanto, dependem do Fundo Global. Estimativas apontam que os financiamentos do Fundo contribuem para prevenir cerca de um milhão de mortes anuais.
Notícia de que os países doadores deixaram de lado seu compromisso com o Fundo Global de Combate à aids, tuberculose e malária veio no pior momento, após anos de trabalho duro e dos recentes avanços científicos, que trouxeram esperança de frear essas doenças
Mas os países doadores deixaram o Fundo Global de lado. Alguns seguraram ou atrasaram as contribuições que haviam se comprometido a fazer. Outros não deram nada. Sem recursos para arcar com novos projetos até 2014, o Fundo teve que dizer a países mais afetados pelas doenças que eles não podem aumentar a oferta de tratamento contra HIV nos próximos três anos, a menos que as verbas já tenham sido aprovadas. Tuberculose e malária também vão sofrer com a falta de recursos. Isso quer dizer que os Ministérios da Saúde serão forçados a racionar a assistência médica e a tomar a difícil decisão de oferecer tratamento de menor qualidade, simplesmente porque o tratamento melhor custa mais caro. E isso em um momento em que avanços científicos poderiam ajudar a frear as três doenças.
Veja a aids, por exemplo. Há 10 anos, o MSF criou programas que desafiaram a concepção vigente até então de que o tratamento não podia ser oferecido em comunidades pobres. Em 2011, 30 anos após o início da epidemia, pesquisas e evidências científicas revelaram que o tratamento contra HIV pode ser uma ferramenta essencial também para frear a pandemia: uma pessoa que recebe o tratamento desde cedo tem 96% menos de chance de passar o vírus para outra. Hoje, entretanto, a maioria das pessoas que recebe o diagnóstico positivo continua sem tratamento.
Em relação à tuberculose, pela primeira vez o número de pessoas com a doença diminuiu - apesar de ainda ser extremamente alto para uma doença curável -, ainda que o número de variações mais letais e resistentes a medicamentos esteja aumentando. No caso da tuberculose, tratamento também é prevenção: quando as pessoas recebem tratamento, têm menos chance de espalhar a doença. Um avanço na tecnologia de diagnóstico melhorou nossa habilidade de determinar quem sofre de tuberculose resistente a medicamentos e, desse modo, oferecer o tratamento certo desde o início.
Quanto à malária, a combinação da oferta de mosquiteiros e de terapias mais eficazes de tratamento reduziu de forma significativa a incidência da doença. Um estudo clínico de 2010 mostrou que tratamentos melhores para variações mais severas da malária em crianças podem reduzir drasticamente a taxa de mortalidade. Porém, as crianças continuam sendo tratadas com quinino, um medicamento mais barato, mas muito menos eficaz. A doença continua matando centenas de milhares de pessoas todos os anos, a maioria crianças. Estimativas do MSF apontam que trocar o tratamento poderia salvar 200 mil vidas todos os anos - a um custo adicional de US$ 30 milhões.
O momento nunca foi tão propício à expansão da oferta de tratamento, sobretudo devido às novas evidências científicas. Mas de onde virão os financiamentos, agora que há uma placa na "porta" do Fundo Global que diz "fechado para novas propostas"?
Já está na hora de o comitê do Fundo Global deixar de ser passivo e alertar sobre a urgência desta situação. O comitê precisa organizar uma conferência de doadores em caráter emergencial nos próximos seis meses, para tentar arrecadar mais recursos. Os doadores que se comprometeram a oferecer recursos devem cumprir suas promessas. As potências econômicas emergentes, como China, Brasil e Índia, também precisam assumir sua responsabilidade. É inconcebível que o Fundo complete 10 anos em janeiro oferecendo amargo presente para o mundo: um retrocesso de três anos na luta contra essas doenças fatais.
Em meu trabalho com o MSF, vi pessoas morrerem de aids, tuberculose e malária. No entanto, recentemente, o que mais vi foram pessoas sobrevivendo a essas doenças. O Fundo Global é uma parte essencial do projeto de saúde mais ambicioso da história. Milhões de pessoas que hoje estão vivas são a prova desse sucesso. Nós não podemos perder a oportunidade de dar um golpe final nessas doenças.
Unni Karunakara é médico e presidente internacional de Médicos Sem Fronteiras (MSF), organização médico-humanitária independente presente em mais de 60 países. Em 2010, MSF ofereceu tratamento anti-HIV para mais de 180 mil pessoas em quase 20 países, tratou 30 mil pacientes com tuberculose e 1,6 milhão com malária.
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