(Artigo)
O GLOBO
29/JANEIRO/10
Muita celeuma tem causado o decreto presidencial que promulgou o III Programa Nacional de Direitos Humanos, o PNDH-3. A celeuma é tanta que se perdeu de vista o foco da questão.
Ficamos tão cegos pela fumaça que nos esquecemos de averiguar de onde vem o fogo - ou se ele existe de fato.
O PNDH-3 é fruto de um extenso processo democrático sem precedentes na História do Brasil e, ouso dizer, do mundo.
Estudiosos internacionais da democracia e dos processos democráticos de formulação de políticas públicas esforçam-se para criar modelos teóricos e produzir simulações hipotéticas daquilo que o Brasil tem feito na prática: aprofundar o grau de participação e deliberação das decisões políticas por meio de uma aproximação entre o Estado e a sociedade civil.
Encontra-se em curso no Brasil um processo grandiosamente democrático de formulação de políticas públicas que, infelizmente, ainda é pouco conhecido até mesmo pelos estudiosos das instituições políticas: as conferências nacionais de políticas públicas. Estas consistem em instâncias de deliberação e participação destinadas a prover diretrizes para a formulação de políticas públicas em âmbito federal. São convocadas pelo Executivo, organizadas tematicamente, e contam com participação paritária .
As conferências nacionais são em regra precedidas por etapas municipais, estaduais ou regionais. Os resultados agregados são objeto de deliberação na conferência nacional, e da qual resulta, em regra, um documento contendo diretrizes para a formulação de políticas públicas. Entre 1941 e 1988 foram realizadas no Brasil 12 conferências nacionais.
Entre 1988 e 2008 foram realizadas no país 80 conferências nacionais, 73 delas com claro caráter deliberativo e normativo. No ano passado mais oito conferências foram realizadas.
O PNDH-3 é resultado claro e inconteste das deliberações de cerca de 55 conferências realizadas durante o governo Lula. Conferências estas que abrangem não apenas aquelas específicas sobre direitos humanos (que aconteceram em 2003, 2004, 2006 e 2008, em suas 8aa 11aversões, respectivamente), mas também inúmeras outras em áreas como direitos das pessoas idosas, direitos das pessoas com deficiência, direitos da criança e do adolescente, políticas públicas para mulheres, povos indígenas, promoção da igualdade racial, além da inovadora conferência sobre gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais, para não mencionar as várias conferências de assistência social, desenvolvimento rural, meio ambiente, educação, segurança pública, entre muitas outras.
Daí a transversalidade do PNDH-3, palavrona que muitos têm tomado como palavrão e motivo de crítica ao governo.
Os direitos humanos são necessariamente um tema transversal, que atravessa, por sua natureza, muitas outras áreas. Em pesquisa por mim coordenada no Iuperj, constatamos que as 11 conferências nacionais de direitos humanos até hoje realizadas resultaram em diretrizes que atravessam boa parte dos 32 temas que até hoje foram objeto destes processos participativos de formulação de políticas públicas. E mais: constatamos também que se classifica na área de direitos humanos a maioria das proposições legislativas em trâmite no Congresso que possuem nexo com as diretrizes das diversas conferências nacionais. Não há como se negar a transversalidade do tema.
E não há como se negar também que o PNDH-3 é resultado de um extenso processo democrático, que envolveu diretamente mais de quinze mil pessoas que interferiram na formulação desta política pública, que ganhou forma de decreto, sendo assinada por uma mão, endossada por trinta e três (os ministérios diretamente envolvidos), porém redigida por milhares.
O atual governo não tem nenhum problema em admitir que o PNDH-3 dá continuidade ao 1 e ao 2, que foram editados em governos anteriores, 1996 e 2002, respectivamente. Os planos anteriores consagraram os direitos civis e políticos e em seguida os direitos econômicos, sociais e culturais. O PNDH-3 avança na história da democracia mundial, garantindo os direitos participativos e deliberativos, além dos novos e inovadores direitos à diferença, à verdade e à memória. No que tange à formulação de políticas públicas, nunca Estado e sociedade civil estiveram tão próximos em nossa história democrática.
Talvez estejam tão perto, aliás, que nem conseguimos ver. É o que acontece quando se perde o foco.
THAMY POGREBINSCHI é professora de ciência política do Iuperj.
Cortesia Clipping Bem Fam (29/01/010)
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