Mulheres à deriva
Autor(es): # Danielle Martins Silva, Dario Jardim Cruvinel, Mariana Fernandes Távora e Tiago Alves de Figueirêdo Promotores de Justiça
Correio Braziliense - 10/03/2010
Chico Buarque, com singular sensibilidade para a leitura da alma feminina, brindou a MPB enaltecendo as qualidades do amor de Lúcia, personagem da Ópera do malandro: um homem de jeito manso, que roubava os sentidos e violava os ouvidos da mulher amada com segredos e delicadezas infinitas.
No entanto, outras tantas Carolinas, Cecílias e Joanas brasileiras, menos afortunadas, têm os corpos e almas violados pelos parceiros, com uma brutalidade que tem por objetivo roubar-lhes a dignidade, a integridade física, a altivez e a capacidade de reação. Isso quando não lhes rouba a vida.
O STJ decidiu, em 24/2/10, que, em casos de violência doméstica, é preciso manifestação da mulher agredida para que o agressor seja punido. A mensagem foi clara: a família, para o Judiciário brasileiro, deve preservar-se a qualquer custo, mesmo que às expensas das mulheres agredidas e já quebrantadas em sua vontade e dos filhos constantemente expostos à violência.
É certo que a questão da violência doméstica é por demais complexa para ser reduzida a temas exclusivamente jurídicos, e o direito penal está longe de ser a panaceia dos males sociais. No entanto, continua a ser um instrumento de tutela imediata de bens muito caros ao direito, como a vida, a dignidade e a integridade física das pessoas. A Lei Maria da Penha, em grande parte ultrajada pela decisão do STJ, trouxe um leque de opções de atuação estatal em favor da mulher, tais como a possibilidade de decretar a prisão preventiva do agressor e deferir medidas protetivas, desonerando as vítimas da difícil decisão de processar ou não os algozes companheiros.
A decisão do STJ implica negativa de acesso à Justiça a grande contingente de mulheres vítimas de violência doméstica. É provável que se esteja vivendo a maior discriminação institucionalizada da história democrática brasileira, pois a não atribuição ou a supressão de direitos, por parte das instâncias formais de controle social, é uma das formas de negar visibilidade a determinado grupo, de negar-lhe poder.
Na violência doméstica, há crenças no sentido de que as mulheres agredidas vivem sempre sob a dependência econômica dos companheiros, ou que a violência ocorre por causa do consumo de álcool, quando esse é apenas catalisador de comportamentos, não seu determinante. Há crenças também no sentido de que as mulheres gostam ou merecem apanhar (porque provocam os agressores). Enfim, há uma série de verdades de senso comum muito difíceis de serem desconstruídas por trás desse fenômeno tão corriqueiro em todo o mundo, em todas as classes sociais, sob uma matriz comum: a crença de que um gênero (masculino) é superior a outro (feminino).
Quando a relação não é de igualdade, mas de superioridade, não há amor, não há troca, não há crescimento. Sem igualdade, o ser é apenas uma fração do que poderia ser, porque será apenas aquilo que alguém dele espera e exige (obediência e submissão). Como acreditar no amor construído sob a égide da submissão e da violência (física ou psíquica), a pior face da desigualdade?
A felicidade nesses termos é algo bastante questionável. Não haveria problema caso o direito jamais tivesse que se ocupar do que se passa no interior da uma família construída sobre essas bases, pois cada um vive a felicidade possível. Porém, uma vez noticiada a agressão, o que resta aos agentes públicos e políticos? Dizer que a “harmonia familiar”, que a felicidade deve ser preservada? Que cabe apenas à mãe decidir se os filhos continuam ou não a ser espectadores da violência no lar?
Argumenta-se que não se pode retirar da mulher o poder de escolha entre punir ou não o agressor. Interessante observar que sempre que o Estado circunscreve um grupo inferiorizado socialmente a uma determinada gama de direitos (e não a todos eles), a pretexto de respeitar a autonomia desse grupo, o faz para garantir que ele permaneça apático e controlado. A autonomia dos judeus, após serem confinados nos guetos, por exemplo, era respeitada na Alemanha nazista.
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