DEBATE ABERTO
SUS: aprendendo a aprender
Para superar os entraves ligados à falta de autonomia gerencial nas unidades assistenciais, os gestores do SUS deparam-se com duas modalidades institucionais: as Organizações Sociais (OSs), de caráter privado, e as Fundações Estatais (FEs), de caráter público, mas com uma estrutura de direito privado e regras flexíveis de direito administrativo.
Tarcísio Zimmermann e Luíz Marques
O SUS é uma grande conquista do povo brasileiro, fruto de um formidável processo de mobilização social ocorrida durante o período de redemocratização do país e de elaboração da Constituição Federal de 1988. Presta ações e serviços em todo o território nacional, constituindo-se em um modelo bem sucedido de política pública. No entanto, a gerência das unidades assistenciais (hospitais e ambulatórios), que tem a missão constitucional (Art. 196) de assegurar o acesso universal e igualitário aos usuários, tem sido o elo fraco do sistema em termos de qualidade e eficiência.
Os problemas decorrem da falta de autonomia financeira e técnico-administrativa, mas também da limitação do financiamento. O gasto governamental per capita com a saúde no Brasil, inferior ao da Argentina e ao do México, indica uma inadequação das despesas frente às necessidades. Esse é o pano de fundo da discussão sobre uma reforma administrativa no setor, que opõe dois projetos antagônicos. De um lado, o neoliberal que, partindo da crença ideológica de que o Estado gere mal os recursos públicos, propõe tratar a saúde como uma mercadoria confinada à lógica do mercado, em vez de reconhecê-la como um direito da cidadania. De outro, o republicano que, visando maior efetividade e resolutividade no cuidado com a saúde, aposta em uma mudança institucional e gerencial para ampliar a cobertura e qualificar a proteção oferecida pelo Estado.
As reclamações sobre as unidades de atendimento, sintetizadas nas filas e na demora para consultas e internações, turvam os avanços palmilhados pelas políticas públicas direcionadas à saúde e fomentam a ideia errônea de que o SUS é “um sistema pobre para pobres”. Com exceção do PSF-Programa de Saúde da Família, as críticas a procedimentos de baixa complexidade do sistema de atenção básica são pertinentes, ainda que muitas vezes sejam manipuladas na mídia por interesses privatistas. Mas essas críticas tendem a ocultar o fato de que até os detentores de planos de saúde privados recorrem ao SUS, quando os procedimentos médicos que precisam são mais onerosos.
Grandes consensos, pequeno dissenso
Gestores municipais, pesquisadores/docentes, movimentos sociais, conselhos de saúde estão de acordo sobre quatro pontos convergentes para o funcionamento do sistema: 1) a gestão compartilhada no âmbito federal e estadual, sob o comando de uma direção em cada esfera de governo; 2) a descentralização com papel destacado para os municípios; 3) a ênfase na atenção preventiva, sobretudo através do PSF, das campanhas de vacinação e de educação para a prevenção e; 4) a importância do controle social.
A discórdia é suscitada pela implantação dos novos modelos institucionais de gerência das unidades assistenciais. Apesar de a municipalização da saúde ser um sucesso federativo, não raro amparado em consórcios regionais, a sua gestão vem provocando controvérsias entre atores que situam-se no mesmo campo político-ideológico e, igualmente, rejeitam a privatização dos serviços. O dissenso, pois, é fraterno, dá-se entre lutadores/as que combatem em uma única trincheira, a do republicanismo, embora intervenham a partir de lugares diferentes e com responsabilidades públicas diferentes.
Se na origem do SUS encontra-se uma reforma estatal calcada no processo de democratização de direitos, o que ora estimula a busca de uma nova institucionalidade de assistência é a preocupação dos gestores com o aperfeiçoamento dos trâmites para o exercício daqueles direitos. Pressionados pela opinião pública que aponta a saúde como o nó górdio das administrações municipais, os prefeitos têm incentivado o surgimento de Fundações não subordinadas à administração direta do Estado para melhor conjugar a universalização, a igualitarização e a qualificação dos serviços.
Fundações estatais de direito privado
As principais dificuldades gerenciais encontradas no sistema de atenção básica e de média e alta complexidade concentram-se nas carências da infraestrutura, no suprimento de medicamentos, nos insumos médicos e na gestão de pessoas. A falta de autonomia orçamentária, financeira e administrativa compromete a efetividade das unidades assistenciais, tornando difícil a incorporação de profissionais na quantidade e na diversidade necessárias e prejudicando a aquisição de medicamentos e equipamentos. O cumprimento das normas exigidas pela administração direta, como os prazos das licitações para a compra de itens que possuem urgência, retiram agilidade e qualidade do atendimento e não acompanham o dinamismo tecnológico do mercado. Sem citar a lentidão no preenchimento de vagas, por conta do rito longo. Não há como substituir servidores estatutários em férias porque tal não se enquadra nos critérios de contratação emergencial.
Para superar os entraves ligados à falta de autonomia gerencial nas unidades assistenciais, os gestores do SUS deparam-se com duas modalidades institucionais: as Organizações Sociais (OSs), de caráter privado, e as Fundações Estatais (FEs), de caráter público, mas com uma estrutura de direito privado e regras flexíveis de direito administrativo. As OSs baseiam-se nos contratos de gestão terceirizada implantados pelos governos tucanos de São Paulo ao longo da década de 90 e não explicitam a relação com segmentos da clientela (SUS, convênio, seguros, etc), ferindo os princípios da integralidade e da equidade. Até 2009, contavam-se 30 em SP e 106 no Brasil.
A opção dos que sustentam o projeto republicano é pelas FEs, que estão adstritas à administração indireta e sujeitas à supervisão direta do gestor público, além de submetidas aos órgãos de controle – Controladorias, Tribunais de Contas e Conselhos de Saúde. Devem cumprir os objetivos contratados pelo poder público, prestar atendimento exclusivo à clientela do SUS, fazer concurso público para a admissão de servidores pela CLT (sem estabilidade, mas com direito à negociação coletiva e segurança contra as demissões imotivadas) e obedecer a um conjunto simplificado de exigências para licitação pública, sem que suas receitas constem do orçamento do ente contratante. As FEs garantem os princípios da universalidade e do igualitarismo, sendo uma alternativa de gestão legítima para os defensores do sistema SUS. Proliferam-se com aval dos usuários.
Aprendendo a aprender
Nos anos 60/70, quando irromperam os novos sujeitos sociais (ecologistas, feministas que afirmavam a especificidade da questão de gênero, afrodescendentes com o slogan black is beautiful, ativistas com a bandeira da livre orientação sexual), a reação da esquerda ortodoxa foi de rejeição ao que reputou “uma ameaça à unidade da classe operária”, e de defesa da moral dominante e dos costumes. Os movimentos à época exerceram o papel de educadores, descortinando valores e horizontes. Nos 90, quando o governo municipal de Porto Alegre criou o Orçamento Participativo, organizações de esquerda e associações de moradores manifestaram-se de maneira cética, temendo que o OP cooptasse as entidades comunitárias. Quando o governo Olívio Dutra (1999-2002) instituiu o salário mínimo regional no Rio Grande do Sul, a resposta das centrais sindicais oscilou da desconfiança à hostilidade. Nessas duas ocasiões emblemáticas, os governos agiram como parteiros do novo. A lição que fica é de que a verdade se move. Logo, é necessário acautelar-se para que as convicções subjetivas não se enrijeçam a ponto de virar dogmas.
Os questionamentos sobre a legalidade e a constitucionalidade das FEs, que já foram sobejamente atestadas pelo Poder Judiciário e o Ministério Público, não têm fundamento. Tampouco têm base as acusações de que privatizam a saúde. Ao contrário, afiançam a prontidão e a qualidade de serviços sem arranhar os princípios do SUS. Diz-se ainda que as contratações pela CLT gerariam instabilidade e ausência de comprometimento profissional. O argumento inverte as imprecações dos neoliberais contra o funcionalismo público, beirando o insulto à maioria dos assalariados brasileiros, celetistas e comprometidos com o desenvolvimento do país. Se o argumento, porém, pretende fazer um chamado à vigilância ativa da sociedade civil e dos Conselhos de Saúde para que reforcem a fiscalização das FEs, então merece aplausos. Nenhum direito dos trabalhadores do setor pode ser negligenciado. Nenhum abuso pelos governantes de plantão deve ser admitido. Vigiar, sim. Parar o movimento histórico rumo às FEs, não. Seria uma tarefa de Sísifo.
Não à toa, a Associação dos Secretários e Dirigentes Municipais de Saúde do RS (Assedisa/RS) propõe que o governo gaúcho crie uma referência estadual, inspirada na Fundação Estatal Saúde da Família, criada na Bahia em 2007 pelo governador petista Jaques Wagner. Evitaria disputas em torno dos salários dos médicos entre as prefeituras do interior e as da região metropolitana, estabelecendo a isonomia salarial. Em Novo Hamburgo, a criação da Fundação de Saúde Pública, em agosto de 2009, tem sido uma experiência animadora, considerando-se a sua curta existência. Com ela, foi possível reverter uma situação em que mais de 75% dos trabalhadores do hospital municipal e unidades de saúde eram terceirizados com contratos precários. A Fundação promoveu concursos e nomeou mais de mil servidores. Reduziu-se a mortalidade infantil. Implantou-se o PSF. Acabaram-se as filas para exames de raios X, mamografia, ecografia mamária, etc. Conclusão: o debate sobre esse novo modelo de gerência institucional das unidades assistenciais (as FEs) precisa acontecer sem as "cortinas" do corporativismo, alicerçado em duas premissas programáticas: a saúde do povo e o fortalecimento do SUS.
(*) Tarcísio Zimmermann (PT) é prefeito de Novo Hamburgo (RS). Luíz Marques é professor de Ciência Política da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
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