O Brasil e os compromissos internacionais em AIDS
Pedro Chequer
Coordenador do UNAIDS no Brasil
O Sistema Único de Saude, estabelecido
com base na Constituição de 1988, que define a saúde como um direito do
cidadão e dever do Estado e tem seu marco de regulamentação na Lei
8080/1990 que dispõe
sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a
organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e define sua
estrutura política e atribuições de seus diversos níveis, sem dúvida
alguma foi o arcabouço que permitiu ao Brasil estabelecer com qualidade
e competência o programa de acesso ao tratamento da infecção pelo HIV e
da aids. Os primeiros passos de sua implantação em 1996, sem qualquer
dúvida, não teria sido possível sem os princípios e estrutura dos SUS.
Devemos ter claro, todavia, que apesar do princípio constitucional do
direito à saude, a operacionalização desse direito nas mais diversas
áreas da saúde, em que pese os avanços obtidos, ainda apresenta
importantes lacunas e carece de mecanismos mais consistentes para sua
efetivação plena. A garantia, por exemplo, do acesso gratuito aos
antirretrovirais só foi possível em sua plenitude, por intermédio da
Lei 9313/96, projeto de autoria do Senador Jose Sarney, aprovado pelo
Senado Federal e sancionado pelo presidente Fernando Henrique Cardoso,
apesar das restrições de caráter econômico trazidas à discussão por
determinados setores do próprio Governo. A existência do SUS e a
garantia constitucional, ainda que necessárias, não seriam suficientes
para assegurar esse direito - Haja vista uma série
de problemas de saúde que enfrentam obstáculos para seu atendimento
segundo os parâmetros do acesso universal por direito constitucional e
como dever do Estado.
O
estabelecimento do tratamento antirretroviral gratuito, sobre o qual
não pretendemos aprofundar a discussão nesta reflexão, teve sua origem
na pressão social e na fundamentação científica, ao que se soma a
sensibilidade política que fez converter um anseio social legítimo em
uma prática do Estado; esta pratica de modo ininterrupto, tem se
mantido, independentemente de seu custo financeiro, ainda que apresente
custo-benefício inquestionável – uma fonte de poupança de recurso
público, tanto no campo da saude como da previdência, sem entrar no
mérito de aspectos outros de relevância extrema.
Ao
longo desse período, a aquisição dos medicamentos destinados a aids
permaneceu centralizada - decisão estabelecida em 1996 e que tem
representado importante fator de economicidade e garantia de um
abastecimento continuado. Ao lado desse parâmetro normativo,
estabeleceu-se, também, que a aquisição de medicamentos para agravos
associados à infecção pelo HIV seria de responsabilidade de estados e
municípios; lamentavelmente, apesar da pactuação estabelecida, seu
pleno cumprimento, com honrosas exceções, tem apresentado importantes
lacunas de implementação. Ao tempo em que se manteve
centralizada a aquisição de antirretrovirais, outros aportes do governo
federal foram descentralizados, entre eles, parte dos recursos
destinados ao enfrentamento da epidemia da aids. “Instituída em
dezembro de 2002, a Política de Incentivo consiste
em financiar Unidades Prestadoras de Serviço, por meio de mecanismos
regulares do SUS. É a transferência fundo a fundo - repasse regular e
programado de recursos diretamente do Fundo Nacional de Saúde para
estados e municípios, independentemente de convênio ou instrumento
similar”, é o que reza o Portal do Departamento de Aids, de modo
bastante didático e objetivo.
Esta
nova estratégia, correta do ponto de vista político e da necessidade de
maior autonomia a estados e municípios, substituindo a antiga
modalidade de convênios, esbarrou-se na dificuldade da utilização dos
recursos em tempo oportuno, chegando em algumas situações a níveis
inaceitáveis do pondo de vista do uso adequado do recurso público,
quando se constata acúmulo de anos em recursos financeiros depositados
nas contas bancárias sem a utilização em tempo hábil, não pela
inexistência de planos e programas para sua execução ou mobilização da
equipe técnica, mas pela dificuldade da burocracia e baixo nível de
priorização política, obstáculos que, com raras exceções, também se
acumularam e se agravaram ao longo do tempo.
Preocupa-nos
recentes informações sobre a pulverização do recurso destinado a aids
decorrente da política de incentivo e acumulado até dezembro de 2011.
De modo algum entendemos como aceitável do ponto de vista ético, a
existência de recursos sem utilização quando as necessidades são
prementes e se agravam tanto na área de assistência, quanto de
prevenção, e particularmente nesta. Aí estão também incluídos os
recursos destinados às organizações da sociedade civil, que por todo o
país fecham as portas, mesmo as mais tradicionais, pela carência de
recursos para seu funcionamento.
Vale registrar que a descentralização também incluiu o aporte de recursos ao movimento social para suas ações em caráter complementar e de apoio as ações do Estado,
em diversas áreas onde somente ele é capaz de atuar com competência,
estabelecendo ambiente de adequado acolhimento, além do exercício
essencial de controle social, indispensável num regime democrático e
transparente.
Diante
da inadmissibilidade da situação atual, uma medida de caráter político
poderia ter sido tomada, como por exemplo, o estabelecimento de
parâmetros administrativos que viabilizassem a utilização do recurso
por estados e municípios segundo as Programações de Ações e Metas
aprovadas pelos conselhos municipais e estaduais com a celeridade
necessária e utilização da medida que ora se anuncia em caso de
inadimplência num determinado período a ser consensuado.
Preocupa-nos
mais ainda, que ao lado dessa medida, outra poderá ser adotada: a
interrupção do incentivo destinado a aids a partir de janeiro de 2014.
Esta medida certamente reflete o caráter de prioridade que
progressivamente vem o Brasil dando ao controle da epidemia, que passa
cada vez mais a ser visto como mais um problema de saúde pública, no
entendimento de que os avanços obtidos são suficientes; esta percepção
contraria de modo concreto o entendimento que se tem sobre a urgente
necessidade de rever e ampliar estratégias de ação tendo em vista as
grandes lacunas observadas, às quais se somam a inequidade regional: a
epidemia continua crescendo no Norte e Nordeste do país, do ponto de
vista de sua incidência e taxas de mortalidade específica e a região
Sul apresenta situação epidemiológica preocupante.
Revendo
os compromissos assumidos pelo Brasil nas Assembleias Gerais das Nações
Unidas e particularmente na última Assembleia, este seria o momento de
se redobrar esforços e alocar mais recursos específicos com vistas a
garantir o cumprimento da meta de acesso universal ao tratamento,
prevenção e cuidados até 2015, ao que se somariam, obviamente, medidas
que garantissem a celeridade e pertinência da aplicação dos recursos.
Em que pese os avanços, o Brasil não se encontra entre os países considerados de cobertura universal,
segundo o último relatório da OMS/UNAIDS, em função do grande numero de
cidadãos soropositivos para o HIV que, por não terem sido
diagnosticados, desconhecem seu status e não estão sob tratamento.
Apesar do entendimento distinto, talvez por equívoco conceitual, também o acesso não é universal.
Suficiente visitar o semiárido nordestino e a região Norte do país (e
não apenas estes) para se constatar a carência de serviços que
possibilitem o acesso a testagem e tratamento antirretroviral. Ora, se
não há testagem ou disponibilidade local de medicamento ou se encontram
a dias de viagem para que se possa aceder aos serviços, não podemos
considera-los como acessíveis. Todavia, em função de políticas
públicas que anteriormente registramos, a disponibilidade de
medicamentos tem sido assegurada pelo Ministério da Saúde em sua
integralidade do ponto de vista orçamentário e logístico, com avanços
excepcionais nos últimos doze meses no que concerne a continuidade no
seu suprimento, sem registro de qualquer interrupção.
Devemos
ter claro que para cumprir os compromissos internacionalmente firmados
pelo Brasil, o adequado aporte de recursos e sua utilização em
prioridades epidemiologicamente estabelecidas é aspecto essencial a ser
observado; a isto se deve somar a construção de estratégias inovadoras
e mobilizadoras em âmbito nacional, que envolvam os níveis políticos
decisórios em todas instancias pertinentes e se repliquem em cada nível
de governo de modo a ser implementado segundo a realidade local da
epidemia.
O
UNAIDS enquanto instituição parceira, comprometida com o pleno alcance
das metas globais em relação ao enfretamento da epidemia, para a qual a
contribuição do Brasil se faz imprescindível, vem registrar sua
preocupação e externar seu apelo para que alternativas sejam postas em
práticas, na expectativa de que mais uma vez, o país volte a se
despontar como referência de políticas públicas na área da AIDS.