Jacqueline Rocha Côrtes: Sustentar para ser sustentadoO enfrentamento da AIDS no Brasil precisa ser compreendido de forma mais ampla por uma simples razão: ele vem produzindo bons resultados em termos de contenção da taxa de expansão da doença e melhoria da qualidade de vida de quem vive com Aids. No entanto, essa realidade, que por si só já é fundamentalmente importante, suscita uma questão que deve ser respondida: esta experiência brasileira é replicável, ou ao menos adaptável?De um modo geral, vejo a iniciativa nacional baseada em três eixos básicos:1. Distribuição gratuita dos medicamentos antiretrovirais e medicamentos para infecções oportunistas para TODA população necessitada
2. Mobilização das redes sociais
3. Existência de uma competência técnico-científica instalada no país, agregada a uma vontade política.
A distribuição gratuita dos medicamentos para TODA população necessitada, deve ser entendida, antes de tudo, como uma opção política do Estado brasileiro, e não como uma política de governo. Tal posicionamento político parte da premissa que o mais importante é que o medicamento possa chegar às mãos e bocas daqueles que precisam. Portanto, a questão não se reduz tão somente a gratuidade do medicamento, mas da NECESSIDADE desde medicamento chegar a todos os pontos do país onde exista alguém infectado com o vírus da Aids. É, portanto, necessário haver um sistema logístico satisfatoriamente montado. Tal sistema pode ser o mesmo que costuma ser mobilizado em campanhas nacional de vacinação, por exemplo. Por outro lado, há a necessidade do portador ser identificado, com todos os cuidados e ética que isto exige, para que possa ser tratado e receber o medicamento. Uma maior humanização do sistema deve ser acatada e exercida como rotina. Um esforço nacional amplo para a promoção do diagnóstico precoce urge. Sendo assim, medicamento gratuito circulando através de um sistema logístico com grande capilaridade no território nacional são condições fundamentais.
Fazer o remédio chegar às mãos de quem precisa, a custo zero, é uma condição necessária, mas não suficiente para o enfrentamento da Aids, pois, esta pessoa precisa tomar o remédio. Ela pode ter o remédio em mãos, mas pode não tomá-lo com a regularidade que o tratamento exige ou propõe. Como fazê-la tomar? Como fazê-la tomar a decisão de tomar o remédio com a regularidade que este exige? Em outras palavras, como promover a adesão ao medicamento e tratamento? E é aí que surge a questão das redes sociais e o protagonismo das Pessoas Vivendo com HIV/AIDS – PVHA.
O pressuposto é que as pessoas em geral sentem-se, identificam-se socialmente com determinados grupos sociais, dos quais, por vezes, fazem parte. No interior destes grupos são desenvolvidos relacionamentos e construídos significados sobre as coisas do mundo, boa parte deles compartilhados por quem se sente “parte” de tal ou qual grupo. Os grupos, em especial numa sociedade urbana e fragmentada como a nossa, desenvolvem códigos e linguagens específicos. Tais códigos e linguagens identificam os “iniciados”. Tais códigos e linguagem são “barreiras à entrada” e domina-los é condição necessária para fazer parte deles.
Tais “barreiras à entrada” dificultam que médicos, enfermeiros, psicólogos e toda a sorte de profissionais e segmentos sociais possam ter seu conhecimento e “mensagem” reconhecida como legítima e esta dificuldade se traduz na dificuldade de construir um diálogo efetivo. Por diálogo efetivo entenda-se a construção de argumentos suficientemente coerentes e contundentes que leve a pessoa a se submeter aos procedimentos necessários.
É prudente, portanto, identificar os diversos grupos sociais, e no interior destes grupos, identificarem lideranças, com potencial para compreender a complexidade da questão, capacitá-las e valorizá-las, de maneira a que elas possam fazer a “tradução” necessária ao entendimento e sensibilização daqueles que as respeitam, contribuindo assim para que esse entendimento tão complexo possa ser multiplicado, respeitando as diversidades culturais, sociais, religiosas, políticas, econômicas e sexuais às quais a AIDS no remete.
Esta “mais completa tradução”, para lembrar Caetano Veloso em Sampa, é fundamental para que o diálogo proveitoso se estabeleça entre a decisão política e a ação individual.
E, agregando a abordagem da distribuição gratuita de medicamentos e das redes sociais à existência de uma competência técnico-científica (e hospitalar), somada a uma capacidade de equipamentos sociais instalados, são pontos cruciais para que os inevitáveis enfrentamentos entre o interesse público e das indústrias farmacêuticas -quando ocorrer – possam ter maior chance de um desfecho em favor da saúde da população e da dignidade e vida das pessoas que vivem com Aids. Este sistema técnico-científico deve ser capaz não apenas de “quebrar patente”, mas de produzir e distribuir medicamentos nas condições exigidas.
Para finalizar, devemos alimentar essas redes para que as mesmas possam continuar alimentando o nosso Programa Brasileiro de Luta contra a Aids (entenda-se por programa brasileiro de luta contra a Aids todos os esforços nacionais: não-governamentais e governamentais; sociais e políticos) e mobilizando a comunidade internacional. Só existimos enquanto Programa Brasileiro sustentável porque somos sustentados por toda uma rede mobilizada e que acredita que somos capazes de fazer a diferença num contexto mais amplo aonde a saúde vem antes do comércio e a VIDA não tem preço.
Jacqueline Rocha Côrtes
Ativista HIV+ e consultora em HIV/AIDS e Direitos Humanos
RNP+ e MNCP+
Agradecimento: Ao meu irmão Mauro Rocha Côrtes, Professor Adjunto do Departamento de Engenharia de Produção da Universidade Federal de São Carlos – SP, que muito tem contribuído comigo para uma melhor elucidação dos fatos através de nossas conversas.
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