Oração para o tempo da quaresma
Senhor Jesus, vossa Igreja, ao instituir o tempo quaresmal como preparação para a solene Páscoa anual, nele inseriu a prática do jejum e da mortificação.
Confesso que estas duas práticas, embora as tenha conhecido desde minha infância, jamais foram por mim assimiladas. Além do mais, foram freqüentemente deformadas. Privar-me de um chocolate ou refrigerante; sofrer paciente o calor e abster-me de água gelada; abandonar determinado programa de TV; encurtar conversas ao telefone...
Francamente, Senhor, que tem a ver tudo isso com a vida cristã? Necessitais de estômagos semi-vazios, ou de renúncias minuciosas?
E há mais: não me podem estas práticas conduzir ao envaidecimento? Não existe o perigo de me alçarem ao pináculo de mim mesmo e, no final desta Quaresma, sentir-me em paz comigo, avançando pretensões descabidas diante de Vós? Não pode a prática do ascetismo (que palavra tão fora de época!) transformar-me num ser soberbo e credor perante Vós? E tudo isso se passará apenas entre nós dois? Não é essa relação intimista, da qual outros estão excluídos, justamente criticada por todos os que descobrem o valor comunitário da Quaresma?...
Ou então, Senhor, - e esta é outra possibilidade bem real - transtornei ou falsificaram para mim antigos mestres e pregadores o que, lido à luz do Vosso Evangelho, recobra significado novo e singular?
Sim, Senhor, esta é a verdade. Vós dissestes que, enquanto vossos discípulos desfrutavam de Vossa companhia, não deviam jejuar. A presença do esposo e sua natural alegria excluem a tristeza! Mas, acrescentastes: “dias virão em que o esposo lhe será tirado; então naquele dia jejuarão.”
Ah Senhor, compreendo agora que o genuíno jejum cristão está relacionado com Vossa partida e Vossa ausência. Compreendo, Senhor, que ele se relaciona com Vossa Paixão dolorosa. À Vossa luz compreendo que o jejum, assim intuído, recobra sentido. Será mesmo normal a uma vida cristã digna desse adjetivo.
Afinal, se não me privo de nada neste mundo; se satisfaço todas as exigências de meu corpo e de minha psicologia; se busco a felicidade imediata para todos os reclamos da carne; se insisto em viver comodamente e sem nenhuma privação, posso afirmar que meu Esposo, o Encanto dos meus olhos, está ausente? Ausência não sentida e percebida, Senhor, continua a ser porventura ausência? Se neste mundo me satisfaço sempre, sem jamais dizer “não” a qualquer veleidade ou capricho, posso dizer que sinto de fato Vossa ausência e que nada Vos substitui? Posso afirmar que tenho fome e sede de Vós?
Sim, Senhor, agora sei o que é jejuar: jejuar é dizer, “não” a mim mesmo; e isto não só com palavras, mas também com o corpo, expressão externa de minha pessoa.Compreendo também que neste mundo nada me poderá jamais satisfazer, sem Vossa presença. Noto, contudo, freqüente dissociação entre a palavra e a prática concreta, pois se me comporto aqui como aquele que sempre possuiu o que deseja, haverá ainda lugar para o Acabamento futuro que sois apenas Vós? Vós ordenais que eu exprima não só com a mente mas também com o corpo o período do tempo inacabado vivido no exílio deste mundo, longe da visão reservada à Pátria. Vistas as coisas desse modo, entendo, Senhor que se minha vida cristã não é piedosa ilusão acrescida de devoções adicionais e periféricas, haverá sempre necessidades de se jejuar. E não apenas jejum de alimentos (que no mundo pós-cristão em que vivo, recebe o nome moderno e elegante de dieta), mas ainda jejum dos olhares, jejum das palavras (ah, o silêncio é para o espírito o que o sono é para o corpo!) jejum dos ouvidos; sobretudo jejum do consumismo grotesco e vulgar; jejum, finalmente, de meus pecados, com os quais prolongo as atrocidades que vos infringiram vossos inimigos!
Não é desejo meu, Senhor, que meus jejuns se restrinjam ao âmbito estreito de nossas relações pessoais. Decididamente não quero ser um cristão e católico intimista e egoísta. O que subtraio a mim neste tempo quaresmal posso reciclar e reverter em benefício de meus irmãos. E não só o dinheiro, mas também o tempo o carinho, a solidariedade, a paciência, o perdão.
Senhor, se me concederdes a graça de jejuar nesta Quaresma, concedei-me ainda outra graça: não me envaidecer e não me sentir superior aos demais. Pelo contrário, o que vos suplico é para mim uma graça à primeira vista antipática: um sentimento de confusão e de vergonha. Sim, sem nenhum masoquismo: confusão e vergonha ao comparar o que por Vós suporto no período de vossa ausência sentida em minha vida neste mundo à vista de Vosso Corpo por mim pendente na Cruz...
Honestamente, Senhor, que vos tenho eu na realidade oferecido em troca do quanto por mim sofrestes?
Vós nada para Vós reservastes ao Vos doardes a mim. E eu Vos dou apenas migalhas que sobram de minha abundância...
Concedei-me ao menos isto, meu Senhor Crucificado: que a prática renovada de meu jejum quaresmal me conduza para mais perto de Vós, que de tudo Vos despojastes por mim!
Que, no final desta Quaresma, diga eu também, e não apenas com as palavras do Salmista, mas com toda verdade de meu ser que é espírito e corpo também.
"Só em Deus encontra serenidade a minha alma"
Padre Fernando Cardoso
Fonte: Portal Católico.org.br
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