Aids, confiança e negligência
A situação é preocupante e, em larga medida, evidencia a presença ainda forte de uma cultura machista, alimentada também pelas mulheres, em que o homem, movido por capricho ou comodismo, comanda a relação sem nenhuma responsabilidade
Está fazendo trinta anos que a Aids surgiu na história da humanidade e associou um risco muito concreto ao ato sexual. O primeiro caso conhecido no Brasil foi registrado em 1980. Em 1985 surgiu o Gapa (Grupo de Apoio à Prevenção à Aids), primeira ong do país e da América Latina no combate à doença. Apesar disso, muitos brasileiros ainda se comportam como se a Aids não existisse e o sexo desprotegido não oferecesse risco algum.
A extrema negligência de uma parte da população em relação ao perigo de contaminação pelo vírus HIV assoma cristalina em constatações como a que foi feita pela repórter Maíra Fernandes, publicada na edição de ontem deste jornal (“Cresce a venda da pílula do dia seguinte após o Carnaval”, pág. A4). Embora sem dispor de dados estatísticos, a repórter percorreu farmácias da cidade e comprovou que uma parte das mulheres está adotando a contracepção de emergência, extremamente agressiva para o organismo feminino e contraindicada para uso contínuo, como sucedânea para o uso de preservativos ou da pílula convencional.
Ao adotar a 'pílula do dia seguinte' e dispensar seus parceiros do uso de camisinha, as mulheres se tornam vulneráveis a pelo menos três problemas conhecidos: a gravidez indesejada (já que, segundo especialistas, esse método apresenta falha de pelo menos 5%, que aumenta conforme passam as horas após o ato sexual); efeitos colaterais e doenças provocados por uma overdose de hormônios (como problemas vasculares e do aparelho reprodutor) e o contágio pela Aids e outras doenças sexualmente transmissíveis.
“Transar” sem camisinha é uma forma cretina de dizer “eu te amo” e “eu confio em você”, da qual muitas mulheres não conseguem ou não querem se libertar. Isso certamente explica por que a proporção de mulheres infectadas é cada vez maior na cidade, segundo registrou este jornal em dezembro (“Todos são vulneráveis, alerta coordenadora do DST/Aids”, 01/12/2009, pág. B1). E, de certa forma, ajuda a compreender por que as autoridades médicas calculam que, para cada caso de Aids diagnosticado em Sorocaba, exista um outro que ainda não foi descoberto. Afinal, quem confia cegamente no parceiro não precisa fazer exames, certo?
A situação é preocupante e, em larga medida, evidencia a presença ainda forte de uma cultura machista, alimentada também pelas mulheres, em que o homem, movido por capricho ou comodismo, comanda a relação sem nenhuma responsabilidade.
Hoje não se pode argumentar que não existe orientação sobre sexo seguro, nem que os meios destinados a prevenir a gravidez e as doenças sexualmente transmissíveis não estão ao alcance de todos. Somente neste Carnaval, em Sorocaba, cerca de noventa mil camisinhas foram oferecidas gratuitamente para a população, nas unidades de saúde e nos pontos de grande concentração popular. A distribuição de preservativos grátis, embora intensificada nos dias de folia, ocorre durante o ano todo na rede de saúde, que inclusive adota caixas de acrílico ('dispensers') para que os interessados retirem quantos quiserem, sem ter de falar com um atendente.
Toda essa facilidade, bem como o baixo preço do produto nas farmácias, de certa forma evidencia que o problema é mais profundo e complexo do que pode parecer à primeira vista, demandando uma investigação psicológica e sociológica profunda para detectar as origens do comportamento de risco.
E este é um terreno pantanoso, em que pouco se pode cobrar das autoridades, já que o problema, aparentemente, não está na desinformação, mas sim numa sujeição consciente a algo que comprovadamente pode causar sofrimentos cruciantes e a própria aniquilação. Afinal, o que o governo, a imprensa e outras forças da sociedade podem fazer se alguém, no recesso de sua intimidade, resolve rimar amor e dor?
Fonte:twitter aidsbrasil#Aids(www.cruseirodosul.inf.br)
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