Contaminadas pela esperança Crianças que vivem numa instituição para portadores do HIV em Taguatinga driblam a morte, reduzem a zero a carga viral e renascem Correio Braziliense Marcelo Abreu Nem o vírus assustador foi capaz de lhes tirar a vida. Estrangular os sonhos. Ou apagar a esperança. Pelo contrário. Quando existia apenas um fiapo de possibilidade, foi ali que aquelas crianças se agarraram. Decidiram que ainda queriam pular, brincar, rir, fuxicar uma com a outra. Rir e chorar, principalmente quando o chocolate estivesse acabando. A bicicleta furasse o pneu. Ou a bola caísse na casa do vizinho e ele não a devolvesse. Eles fizeram um pacto apenas de vida. E o sangue, antes contaminado, agora nem parece que um dia as acusou, as discriminou impiedosamente e as colocou numa segunda e perversa categoria de ser humano: a dos portadores do HIV. Resultados dos exames recentes mostram que a carga viral negativou. Cura? Não. Alento para crer que alguma coisa boa ainda estar por vir. Ao ouvir o barulho da campainha, a menininha linda de 5 anos e cabelos encaracolados corre em direção ao visitante. Chega ofegante, tamanha a emoção. E grita, com os olhos arregalados e braços abertos de quem sabe dar abraço (e que abraço gostoso!): "Tio, o Papai Noel chegou?" Não, na terça-feira meio nublada, o velhinho barbudo não deu as caras. Mas ele prometeu que chegará. Alguém disse isso à menininha de olhos graúdos. Ela acreditou. Acreditou muito mais do que só em Papai Noel. Acreditou que podia viver. Imagina se Papai Noel não a visitará. Taguatinga, QNC 3. Lá, numa casa com portas e janelas decoradas com vitrais coloridos, 19 crianças e adolescentes fazem planos de Natal. Boa parte deles carrega o vírus da AIDS no sangue. Outros escaparam dele, mas são filhos de pais soropositivos - alguns deles já mortos. Algumas dessas crianças ficam ali no expediente da creche - vão pela manhã e voltam à tardinha para casa. A maioria, no entanto, vive em sistema de abrigamento. Elas moram na instituição. E fizeram dali, da Casa Vida Positiva, o único lar que conheceram e tiveram na vida. O Papai Noel não foi. E daí? Ele irá. Elas sabem que ele chegará. Logo na entrada, uma árvore de Natal enfeita a casa. Pedro, 7 anos, tem certeza: "Eu sonhei e no sonho ele (o Papai Noel) me disse que vem". Rosa, a menininha de cabelos encaracolados, falante como ela só, estica a conversa: "Duvido que ele não venha". Rui, 7, se mete: "Eu até fiz uma carta. Deve tá quase chegando no Polo Norte". Ah, as cartas! Eles não param de escrever. Na terça-feira, sentaram-se numa mesa, nos fundos da casa, e trataram de rabiscar seus últimos pedidos. Quanto mais, melhor. "Se a gente mandar um montão, ele vai ver que a gente se comportou bem" deduz Fábio, 7. Bárbara, 10, diz que não gosta mais de brincar de boneca. Agora, metida a mocinha, toda vaidosa, só pensa em outras coisas. "Pedi um xampu, um condicionador, presilhas e xuxinhas (prendedores de cabelos)." Então tá...Quem vai discutir com menina querendo ficar moça? Com letra desenhada de quem ainda aprende a ler, as cartas são escritas com esmero. A maioria tem desenho. "Papai Noel gosta de desenho colorido", justifica Antônio, 9. Rosa, a tagarela, mais uma vez, se mete: "Eu também sei desenhar". Júlia, 4 anos, irmã de Rosa, tem a quem puxar: "Eu? Já conversei com o Papai Noel várias vezes. Nem é preciso mandar carta". Rosa, sentindo-se poderosa por ser mais velha um ano, devolve: "Você nem sabe escrever..." Existe, sim! Na Vida Positiva, cada dia é comemorado como se fosse um milagre. Vicky Tavares, 61, presidente da instituição, sabe que a palavra é essa mesma: "Algumas crianças aqui foram desenganadas pelos médicos", lembra a avó Vicky, como as crianças a chamam e brigam para ver quem tem mais direito no seu coração. Houve dias em que a morte pareceu inevitável. Marina, 16 anos, linda morena de cabelos pretos e olhos amendoados que lembram os da atriz Juliana Paes, sabe o que é viver quase no fim. Aos 9 anos, foi desenganada. Todas as infecções oportunistas lhe consumiram o corpo. Viver seria impossível. Diante do sofrimento brutal, a morte seria o pior dos tormentos. Definhou a olhos vistos. Chegou a pesar 12kg. Com remédio e alimentação adequadas, a menina surpreendeu a todos - até mesmo aquela gente de jaleco branco. Dia a dia, dava sinais de melhora. Marina deixou a UTI. Voltou para a instituição. Hoje, esbanja saúde e vitalidade. O vírus? Nem no exame aparece mais. Em lágrimas, 'vó' Vicky ratifica: "A esperança nunca vai acabar. Não tem vírus que destrua a capacidade de sonhar das minhas crianças". Reconhece que aquela gente miudinha lhe ensinou mais do que imaginava aprender sobre a vida: "Com elas, eu compreendi o que é respeitar o próximo e as diferenças. Elas me ensinaram cidadania". E se extasia com a esperança - essa sim - que contaminou a casa, em vez do sangue: "Elas creem que as coisas vão melhorar. São otimistas. É por isso que estão a cada dia mais felizes". Felicidade. Essa é a palavra que está impregnada na instituição que não tem cara, cheiro e cor de instituição. "Somos uma grande família", define Vicky. Marina sabe o que aquela paraense de olhos verdes fala. Sem pai e mãe, a adolescente encontrou ali o apoio de que necessitava para continuar viva. Vicky mostra um documento da Vara da Infância que lhe dá a guarda da menina, a primeira moradora, até os 18 anos. "Ela é minha filha." Marina beija aquela mulher que um dia lhe disse que ela poderia viver. Mar de sonhos Nos fundos da casa, embevecidas pelo clima de Natal, as crianças continuam escrevendo suas cartas. Carol, 8, pediu: "Querido Papai Noel, quero ganhar uma Barbie e as Três Mosqueteiras. Ah, também quero ganhar uma escova de dentes". José, 7, não tem dúvida de que seu carrinho com controle remoto chegará: "Ele (Papai Noel ) mora longe, mas nunca deixa de aparecer". Mas, afinal, onde mora esse homem e como ele chegará? As respostas foram as mais encantadoras. Um deles sapecou: "Ele tem a barba grande, carrega presentes dentro de um saco vermelho". Júlia, até então mais ou menos caladinha, se empinou: "Ele é velhinho e gordo". Rosa, a irmã um ano mais velha, se zanga: "Você tá de gracinha? Ele é gordo, mas não é velho". Júlia nem dá ouvidos pra Rosa. O lugar onde Papai Noel mora provocou uma discussão acirrada. Fábio não tem dúvida: "É lá no Polo Norte. Eu já fui lá". E onde fica esse lugar? Ele não hesita: "É bem longe. Você tem que encontrar um pinguim e pedir pra ele te levar lá". Júlia se mete, claro: "É no zoológico". Sem perder tempo, Rosa cutuca: "Você quer que os bichos comam Papai Noel?" O.k! E como esse homem de barba grande consegue chegar, já que mora do outro lado do mundo? Rosa, sempre Rosa, começa. E responde com uma convicção impressionante: "Você não sabe? Ele vem de a pé". Júlia, que também não perde tempo, emenda: "Nada disso, ele vem de bicicleta". Fábio tasca: "Nada de bicicleta. O Papai Noel vem de metrô". Pedro bota pra quebrar: "Nem de bicicleta nem de metrô. Ele vem numa carroça que voa e ainda carrega o saco bem grandão cheio de brinquedos". Dá-lhe! Rosa, a espevitadinha, não gosta de ser contestada. Mas não dá o braço a torcer. Esnoba a resposta de Pedro. Finge que nem escuta e continua desenhando a carta pro Papai Noel. Entre sonhos, encantos e faz de conta, os "netos" da "vó" Vicky driblam dia após dia o vírus que lhes tatuou a vida. Miudinhos, vencem, com força de gigante, o mal. Vicky só lamenta que suas crianças ainda não tenham conseguido liquidar um inimigo maior do que o HIV: o preconceito . "Mata mais do que a doença". Rosa, que a essa altura se vestiu de Mamãe Noel - colocou gorro, um vestidinho vermelho e óculos escuros (Te mete!) -, ainda não entende o preconceito. Nem o mal que ele causa. Melhor assim. Ela brinca e faz carinho em Leandro, 7, que não anda, não fala e não enxerga. Mas escuta. E se acalma quando ouve música ou a voz da menininha que decidiu cuidar dele como se mãe fosse. É a cena mais comovente daquele lugar. Empapuça os olhos de quem vê. Trava a garganta. Júlia rabisca o desenho pro velhinho barrigudo. Pedro espera com ansiedade o dia do Natal. Fábio conta nos dedos o que falta pra noite mágica em que receberá o presente. Bárbara não se contém de expectativa. Suas xuxinhas para embelezar os cabelos hão de chegar. Rui continua dizendo que a carta pro Papai Noel está quase chegando àquele endereço "bem lonjão". E a esperança, mais forte do que o HIV, contaminou uma a uma aquelas crianças. Fez sumir o vírus que segrega e dilacera e pode matar. E lhes diz que elas têm o sagrado direito de viver. * Todos os nomes das crianças citadas nesta reportagem são fictícios. SOLIDARIEDADE Ainda há tempo para fazer feliz uma criança da Vida Positiva. Site: www.vidapositiva.org.br. Caixa Econômica Federal - Agência: 1041; Conta-orrente: 385-0 - CNPJ- 08568601/0001-07 - Telefone: 3034-0948. Endereço: QNC 3, Casa 16, Taguatinga Norte. A instituição está sempre aberta para visitação. |
Nenhum comentário:
Postar um comentário