Em busca de um direito justo (OPINIÃO)
O Globo
26/10/2010
GLAUCIA DUNLEY
O aborto envolve um dilema: uma escolha impossível e uma decisão necessária. Como transformar esta questão num "direito justo" para o povo brasileiro? Embora o reaparecer desta questão fundamental se dê sob forma travestida de interesses eleitoreiros, não desejamos deixar passar a oportunidade de elevá-la ao que ela tem de real e de urgente, e que, portanto, insiste como questão a ser pensada, elaborada na sua complexidade, e talvez só então decidida.
Como bem o disse Elio Gaspari, em seu artigo de 9 de outubro no GLOBO, a prática do aborto não envolve apenas uma questão de saúde pública, mas fundamentalmente o conflito entre o direito à vida e o direito da mulher à liberdade de interromper sua gravidez em até doze semanas. Só aqui já estão nomeados dois titãs da experiência humana: o direito à vida e o direito à liberdade. Entretanto, o debate público trazido pela mídia em torno dos candidatos está tentando acorrentá-los com os grilhões maniqueístas e excludentes da apropriação moral, religiosa ou tecnocrata em termos de saúde. Ora, isso significa despir a questão do aborto de sua tragicidade, que sempre é vivida, independentemente de sua intensidade, no conflito íntimo de cada mulher ao se ver diante dessa situação-limite, dessa escolha impossível, mas que, paradoxalmente, lhe exige uma decisão rápida.
Ou seja, não minimizemos a coisa, nem banalizemos algo que tem a mesma natureza do antagonismo entre Eros e Tanatos, nossas pulsões de Vida e Morte, o que levou Freud a comentar com certa ironia em "O mal-estar da civilização": "É este duelo de titãs que nossas babás tentam aplacar com suas cantigas de ninar." Ou seja, somos efetivamente incapazes de fazer face ao duelo que agita e dilacera nossa alma desde a mais tenra idade. A experiência humana é trágica, pois é vivida, segundo o criador da psicanálise, em termos deste antagonismo que cria um estado de conflito permanente, com pouca ou nenhuma chance de apaziguamento, e que se encontra exacerbado em certas situações, como achamos ser o caso em questão. O conflito existe, embora muitas vezes disfarçado sob uma capa pragmática, ou programática. E é cruel, principalmente se lembrarmos que, em sua base, trata-se de uma decisão que cada mulher é obrigada a tomar sozinha, aumentando o nível de desamparo e angústia a que se vê submetida ao ter que decidir o indecidível, além de lhe caber lidar, também solitariamente, com o peso e a dor dos fantasmas correlativos a este ato, que terão efeitos muitas vezes sobre os filhos que virão a seguir, tornando-os muitas vezes substitutos inconscientes daqueles que foram impedidos de nascer.
A questão do aborto é uma questão política, se nos referirmos ao sentido maior deste termo: o de dar valor à polis, à vida em comum dos cidadãos, à vida do outro, sendo este outro, no caso, tanto aquele que é gerado em situações de imaturidade e precariedade afetiva ou financeira, quanto os que o geraram, levando em conta suas expectativas, suas condições, sua liberdade de decidir. Evidentemente, isto suscita uma articulação necessária com a responsabilidade que se aprende a ter através de uma educação humanizante onde a sexualidade humana poderá ser tratada como meio de vida e não de morte.
Esta questão política levantada pela possibilidade de uma prática discriminalizada do aborto em nosso país solicita a elaboração de leis que tenham como ideal um "direito justo", capaz de levar em consideração a convivência sempre problemática entre os seres humanos, e que é exacerbada pelas não menos problemáticas relações entre o Direito e a Justiça. Pois o Direito não é a Justiça, sendo apenas um instrumento, uma tentativa, muitas vezes vã, de se fazer justiça. Em lugar de nos paralisar, este saber diferencial nos impele a participar da dimensão criativa da justiça em nosso país, no exercício de um direito em transformação, num país em transformação, implicando inclusive a retomada transformadora dos currículos de educação.
GLAUCIA DUNLEY é psicanalista.
Cortesia:BemFam
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