Tortura Nunca Mais celebra participação da juventude no resgate histórico
A presidente do Tortura Nunca Mais – RJ, Cecília Coimbra, revela em entrevista à Carta Maior a satisfação em ver pela primeira vez em quase trinta anos o debate sobre as reparações pelas atrocidades da ditadura militar ganhando corpo, principalmente através das novas gerações, seja no respaldo a implantação da Comissão da Verdade, seja em denúncias contra os agentes do regime de exceção.
Apesar de feliz por ver os filhos da democracia se apossando da história, o grupo mantém sua posição crítica à Comissão da Verdade. Não aprova o nome do ministro do Superior Tribunal de Justiça, Gilson Dipp, na comissão e segue contestando a não publicização dos depoimentos e o não encaminhamento dos resultados para a esfera jurídica.
Sobre a sugestão dos autores do livro “Memórias de uma Guerra Suja” para que o assassino Claudio Guerra, além de prestar depoimento, trabalhe quase como um “consultor” da comissão, Cecília é taxativa. “De jeito nenhum!”, diz, “ele é apenas uma testemunha!”.
Carta Maior - Como o Tortura Nunca Mais recebeu a notícia de que a presidenta Dilma Rousseff doará ao grupo a indenização de R$ 20 mil que receberá do governo do Rio de Janeiro por ter sido presa e torturada no estado?
O grupo Tortura Nunca Mais não é uma ONG. Ele é um movimento social. Nenhum de nós ganha nada, ao contrário, a gente está passando até por sérias dificuldades econômicas. Mas a gente, para manter a autonomia e independência do grupo, não recebe nenhum financiamento de nenhum governo municipal, estadual ou federal. Só que financiamento é uma coisa, doação é outra. Nós iríamos discutir. Assim que nós formos informados oficialmente dessa reparação que a presidente vai doar ao Tortura Nunca Mais, nós vamos discutir o assunto. Possivelmente vamos aceitar. Por quê? Porque doação é uma coisa, financiamento é outra coisa. Doação está vindo de uma pessoa, de uma pessoa que foi torturada, com todo o respeito nosso, por mais críticas que nós possamos fazer a essa comissão da verdade que está sendo colocada aí.
CM - Qual a avaliação do grupo sobre os nomes escolhidos para integrar a Comissão da Verdade e o estágio atual dos trabalhos?
CC - Ainda não começou. Os trabalhos mal começaram, então não dá para fazer avaliação nenhuma. Nós não quisemos discutir nome nenhum, pediram que a gente indicasse nomes. Nós nos negamos a indicar nomes porque nós, se estivéssemos indicando nomes, nós estaríamos referendando essa comissão que a gente já fazia críticas desde o projeto. E quando foi votada nós continuamos fazendo críticas.
Obviamente tem alguns nomes muito importantes, muito interessantes, como a drª Rosa Cardoso, drº Paulo Sergio Pinheiro. Agora, tem nomes que não deveriam constar ali. Por exemplo, o Dipp (Gilson Dipp, ministro do Superior Tribunal de Justiça), que está sendo porta-voz da comissão, esta pessoa foi testemunha do estado brasileiro, em dezembro de 2010, na corte interamericana de direitos humanos da OEA (Organização dos Estados Americanos), contra os familiares das vítimas do Araguaia. Ele foi testemunha do estado brasileiro, do governo, que estava sendo julgado naquele momento pela corte da OEA. Então para nós já é uma pessoa estranha, é muito estranho esse nome estar aí.
CC - Olha são várias. Desde a Lei da Anistia, mostrando toda a conjuntura histórica, que vai levando os diferentes governos, civis, desde 1985 até os dias de hoje, a fazerem acordos com forças civis e militares que respaldaram e apoiaram a ditadura. Forças essas que ainda fazem parte do cenário político brasileiro. Por isso é que essa comissão da verdade vem do jeito que vem. Limitada, bastante limitada, bastante tímida, isso tem a ver com o contexto brasileiro que a gente atravessa desde da época da Lei de Anistia, desde 1979.
E as críticas que a gente faz são fundamentalmente não tornar público os depoimentos e o relatório final, isso tem que ser publicizado, a sociedade precisa saber o que aconteceu, não pode estar sendo tomado depoimento com portas fechadas, sabe? Isso é manter o sigilo e o segredo que a ditadura impôs à gente. Tudo tem que ser publicizado!
O outro ponto é que o relatório final tem que ser encaminhado para o Judiciário. E aí ficam jogando cortina de fumaça, “Ah! Porque querem que a Comissão da Verdade puna”. Nós sabemos que a Comissão da Verdade não é para punir ninguém.
A Comissão da Verdade deveria ser para investigar, levantar dados, averiguar o que aconteceu, tornar público o que aconteceu, que infelizmente não vai fazer, mas a gente vai continuar forçando para que isso ocorra, e encaminhar o seu relatório para o Judiciário.
CM - O prazo para o fim dos trabalhos é de dois anos. A senhora acha que, durante esse período, caso o debate ganhe mais corpo, é possível que ocorra uma mudança e o relatório seja encaminhado ao Judiciário?
CC - Lógico! Eu acho que é possível, mas, olha, eu não posso fazer previsão. Eu acho que vai depender muito das pressões que o movimento social fizer. Podemos avançar alguma coisa mais.
CM - Como a senhora está vendo o debate na opinião pública?
Pela primeira vez nós estamos vendo, e especialmente a juventude, se apossando de sua história. Isso é muito bonito, é emocionante e é muito importante. A juventude hoje está querendo saber mais sobre o que aconteceu naquele período. E isso é muito importante, os movimentos que eles têm feito de denúncias, indo à casa de torturadores para denunciar “aqui mora um torturador!”. Então a gente fica muito feliz com isso. Que bom! Porque a gente daqui a pouco não está mais aí, eu já estou com 71 anos, e as pessoas, as mães, de modo geral, já morreram todas, coitadas, não souberam o destino de seus filhos desaparecidos. E que bom que essa juventude está se apossando disso, porque essa luta não é uma luta que vai terminar agora. A gente sabe que essa luta tem muitos anos ainda pela frente, infelizmente, né?
CM - E a opinião veiculada pelos jornais hegemônicos, especialmente nas Cartas dos Leitores, quando 90% expressam aquela visão de que “os dois lados cometeram crimes”, são “elas por elas”, contra um aprofundamento da Comissão da Verdade, como vê isso?
CC - Pois é. É importante essa pergunta pelo seguinte. O “nós” fomos sequestrados, presos ilegalmente, torturados, muitos desaparecidos, muitos tiveram seus corpos ocultados, todos nós respondemos a inquérito policial militar. Eu, por exemplo, assinei minha prisão preventiva um mês e meio depois que eu já estava presa. Ou seja, eu estava totalmente ilegal. Eles podiam ter desaparecido comigo, como fizeram com centenas de pessoas.
E não houve nada disso do outro lado. Isso é uma cortina de fumaça que os militares saudosistas da ditadura, e os civis que respaldaram a ditadura, ficam lançando na mídia, principalmente nos grandes meios hegemônicos de comunicação. Não é por acaso que as cartas de leitores refletem isso. Mostram uma total ignorância do que foi esse período histórico, uma total falta de informação. Então é a pergunta que se faz: “O que eles querem mais?”, “Ouvir o quê de nós?”.
Nós não temos a mesma lógica dos militares. Nós não queremos torturar ninguém, nós não queremos prisão perpétua para ninguém, nós não queremos pena de morte para ninguém. Isso é a lógica da ditadura, não é a nossa. Então é importante que as pessoas tenham um pouco mais de informação. Nossas informações a gente espera que sejam dadas pela Comissão da Verdade. É para isso que estamos brigando. Para que essa memória, essa história, efetivamente seja contada para todo mundo, para que não haja mais cartas de leitores como essas, de que “o outro lado tem que ser investigado também”. O “outro lado” foi superinvestigado, o “outro lado” foi massacrado meu amigo, o “outro lado” foi desaparecido. O que eles querem mais?
CC - De jeito nenhum! Ele é uma testemunha. Ele é uma testemunha como qualquer outra. Ele tem que ser chamado como testemunha. Admira o governo federal até hoje, o ministro da Justiça, por exemplo, a secretaria especial dos Direitos Humanos, não ter feito uma reunião com os familiares dos desaparecidos que esse Cláudio Guerra cita. Imediatamente o governo tinha que ter chamado os familiares.
Esse cara tinha que ser ouvido. Espero que ele seja chamado, né? E só. Ele não tem que ser “assessor” de coisíssima nenhuma! Você me desculpe, mas os caras de repente estão até querendo valorizar o trabalho deles, entendeu?
Eu não li o livro, não tive corpo nem cabeça para ler o livro. Pelo o que as pessoas estão dizendo o livro tem várias contradições, tem algumas coisas importantes, que não sabemos se é verdade ou se é mentira, agora, é muito estranho seu Cláudio Guerra, depois de tantos anos, ter “chegado a Jesus” e ter se arrependido.
Então, obviamente a gente não vai jogar as informações dele no lixo. Ele tem que ser ouvido. Ele tem que citar nomes. Isso é uma obrigação! Pessoas que levaram outras pessoas já mortas, semimortas ou indefesas para serem jogadas em represas, em toneis cheios de ácido, em alto mar, como a gente sabe. Eu não sei como essas pessoas conseguem dormir. Eu acho que até para que elas possam morrer em paz é necessário que realmente essa história possa ser contada. Que elas procurem a Comissão da Verdade e contem isso. Seria muito importante para elas e para a história do Brasil.
CC - O prazo já foi! Ah, ah, o governo brasileiro já morreu no prazo. A sentença da OEA foi divulgada em dezembro de 2010, o governo brasileiro tinha um ano para cumprir essa sentença e até agora não cumpriu nada. As idas para o Araguaia se colocaram completamente infrutíferas até agora.
O governo não fez nada. Obviamente que a Comissão da verdade cumpriria esse papel, não é? Só que do jeito que foi feita, limitada e tímida, a gente acha que não vai cumprir esse papel, que isso aí é uma mise-en-scene que está sendo feita, para responder a OEA.
CM - E a OEA já tomou novas providências?
CC - Não. Tem mais seis meses. Nós somos inclusive copeticionários nesta ação contra o governo brasileiro, e estamos responde a uma série de quesitos, em segredo de justiça, que a OEA está nos perguntando.
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