O Planejamento Familiar no Brasil (artigo)
EcoDebate
01/06/2010
José Eustáquio Diniz Alves
O Brasil, durante a maior parte da sua história, manteve uma cultura familista e pro-natalista. Por cerca de 450 anos, o incentivo a uma fecundidade elevada era justificado em função da prevalência de altas taxas de mortalidade, dos interesses da colonização portuguesa, da expansão da ocupação territorial e do crescimento do mercado interno.
O Código Civil de 1916 colocava a mulher, enquanto cidadã, em situação desigual em relação ao homem na sociedade e fortalecia os padrões patriarcais de família. Durante o período do “Estado Novo” (1937-1945), no governo Getúlio Vargas, foram adotados dispositivos legais para fortalecer a família numerosa, por meio de diversas medidas: regulamentação e desestímulo ao trabalho feminino; adicional do imposto de renda incidindo sobre os solteiros ou casados sem filhos; facilidades para a aquisição de casa própria aos indivíduos que pretendessem se casar, complemento de renda aos casados com filhos, reforço de renda aos chefes de famílias numerosas cuja renda fosse inferior a um certo patamar, e regras que privilegiavam os casados com filhos para o acesso e promoção no serviço público (Fonseca, 2001).
A Constituição Brasileira de 1937 em seu artigo 124 dizia: “A família, constituída pelo casamento indissolúvel, está sob a proteção especial do Estado. As famílias numerosas serão atribuídas compensações na proporção de seus encargos”. Neste período, além dos incentivos ao casamento e à reprodução, houve uma legislação claramente anti-controlista que proibia o uso de métodos contraceptivos e o aborto: a) o Decreto Federal n. 20.291, de 1932 estabelecia “É vedado ao médico dar-se à prática que tenha por fim impedir a concepção ou interromper a gestação”; e b) em 1941, foi sancionada a Lei das Contravenções Penais que em seu artigo 20 proibia: “anunciar processo, substância ou objeto destinado a provocar o aborto ou evitar a gravidez” (Rocha, 1987).
A postura pró-natalista presente na cultura nacional permaneceu hegemônica até meados da década de 1970, embora o Brasil nunca tenha chegado a formular uma política populacional explícita (Fonseca-Sobrinho, 1993). Os militares que tomaram o poder em 1964 adotaram posturas demográficas expansionistas, expressas no Programa Estratégico de Desenvolvimento (1968-1970) e na mensagem dirigida ao Papa Paulo VI, em 1968, por ocasião da publicação da Encíclica Humanae Vitae (Canesqui 1985). Em 1967 foi criada uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar denúncias da existência de “esterilizações maciças” de mulheres na Amazônia. A CPI não chegou a nenhum resultado conclusivo, mas ajudou a criar um clima de hostilidade contra o planejamento familiar. O Brasil ainda adotou posições contrárias à limitação do crescimento populacional na Conferência sobre o Meio Ambiente, em Estocolmo, em 1972, e nas reuniões preparatórias para a Conferência Mundial de População de 1974, realizadas, em Genebra (Merrick e Graham, 1981).
Oficialmente, o governo brasileiro não teve qualquer ação estatal para atender a demanda por métodos de controle e espaçamento da fecundidade. Na ausência de uma política de acesso aos métodos contraceptivos, o mercado (farmácias, rede de saúde e instituições privadas) passou a ocupar este “espaço vazio”. No vácuo da ausência de políticas públicas de saúde reprodutiva foi criada, em 1965, a Sociedade Bem-estar da Família – BEMFAM – que passou a oferecer serviços de planejamento familiar. A BEMFAM se filiou, em 1967, à International Planned Parenthood Federation (IPPF). Outras organizações não-governamentais e sem fins lucrativos que tiveram atuação no país foram o Centro de Pesquisa de Assistência Integral à Mulher e à Criança – CPAIMC, montada em 1975 e a Associação Brasileira de Entidades de Planejamento Familiar – ABEPF, organizada em 1981. Contudo, a atuação conjunta destas entidades cobria apenas uma parcela limitada da demanda nacional por regulação da fecundidade.
Somente após a Conferencia Mundial de População de Bucareste, de 1974, o governo brasileiro passou a considerar o planejamento familiar como um direito das pessoas e dos casais. O Programa de Saúde Materno-Infantil, lançado pelo Ministério da Saúde, em 1977, foi a primeira ação estatal no sentido de oferecer o planejamento familiar e contemplava a prevenção da gestação de alto risco. Porém, esse programa foi criticado por seu enfoque limitado e a concepção estreita de pensar a saúde da mulher apenas em seu escopo materno.
Com a abertura política e o processo de democratização do início dos anos de 1980, a questão do planejamento familiar passou a ser defendida dentro do contexto da saúde integral da mulher. O resultado foi o lançamento do Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher (PAISM), lançado em 1983, que concebia a questão da saúde da mulher de forma integral, não se detendo exclusivamente nas questões de concepção e contracepção. O PAISM se propunha a atender a saúde da mulher durante seu ciclo vital, não apenas durante a gravidez e lactação, dando atenção a todos os aspectos de sua saúde, incluindo prevenção de câncer, atenção ginecológica, planejamento familiar e tratamento para infertilidade, atenção pré-natal, no parto e pós-parto, diagnóstico e tratamento de Doenças Sexualmente Transmissíveis – DSTs, assim como de doenças ocupacionais e mentais. No contexto do início dos anos 80, a noção “saúde integral da mulher” foi o conceito utilizado para articular os aspectos relacionados à reprodução biológica e social, dentro dos marcos da cidadania (Corrêa e Ávila, 2003).
Em 1983, foi criada uma outra CPI para investigar os problemas vinculados ao aumento populacional, no contexto da crise econômica de 1981-1983. Houve um consenso de que não deveria haver controle coercitivo da fecundidade no país e que a disponibilidade de métodos contraceptivos deveria ser considerada um direito de todo cidadão, sendo um dever do Estado ofertá-los via o sistema de saúde. Desta forma, foi com base nos conceitos fundadores do PAISM que o governo brasileiro elaborou a sua posição oficial na Conferência Internacional de População do México, em 1984.
Este tipo de enfoque foi importante para nortear os debates para a elaboração da Constituição Federal da Nova República. No final dos debates da Assembléia Constituinte, a redação aprovada do § 7º, do artigo 226 da Constituição brasileira de 1988, ficou assim redigido:
“Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas”.
As questões do aborto e da esterilização não fizeram parte do texto constitucional. A ligação tubária e a esterilização masculina eram vetadas no Brasil pelo artigo 16, do decreto 20.931 de 1931 e pelo Código Penal Brasileiro de 1940, artigo 29, parágrafo 2. III, o qual diz que qualquer lesão corporal de natureza grave, resultando em debilidade permanente de membro, sentido ou função do corpo é considerada crime.
Entretanto, a alta prevalência da esterilização no Brasil motivou a instauração de uma outra Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), em 1991, para investigar as causas da “esterilização em massa” das mulheres brasileiras e se existia maior probabilidade de esterilização das mulheres negras. Os trabalhos da CPI mostraram que não existia discriminação racial – já que as mulheres brancas tinham maior probabilidade de estarem esterilizadas – mas apontou para a necessidade da regulamentação da prática de esterilização feminina e masculina (Cavenaghi, 1997).
A partir desta CPI, o Parlamento brasileiro começou a discutir uma legislação sobre o assunto e, em 1996, o Congresso Nacional aprovou a Lei n. 9.263, que regulamenta o § 7º do art. 226 da Constituição Federal, que trata do planejamento familiar no Brasil. Esta lei incorpora muito do que havia sido discutido anteriormente no país sobre o planejamento familiar enquanto um direito da mulher, do homem e do casal, fazendo parte do conjunto de ações de atendimento global e integral à saúde e proíbe qualquer medida coercitiva. Na década de 1990 foram criados os primeiros serviços de referência para o atendimento aos casos de abortos previstos no Código Penal de 1940 (gravidez por estupro ou quando apresenta risco de morte para a mulher).
Desta forma, pode-se perceber que nas décadas de 1980 e 1990 o Brasil conseguiu implantar uma legislação regulando a prática do planejamento familiar. Isto não quer dizer que o país adotou uma política populacional controlista. O Estado brasileiro continuou reafirmando a posição contrária às metas demográficas. O que houve foi um reconhecimento que a população estava demandando meios para a autodeterminação reprodutiva. Na verdade, a lei do planejamento familiar no Brasil contou com o aporte do conceito de Direitos Reprodutivos aprovado na Conferência Internacional de População e Desenvolvimento (CIPD) do Cairo, de 1994 e foi sancionada em um momento em que a transição da fecundidade já estava avançada.
De fato, a demanda por métodos contraceptivos se difundiu progressivamente desde a década de 1960 quando o número médio de filhos por mulher começou a cair no Brasil. Em cerca de 40 anos, a Taxa de Fecundidade Total (TFT) que estava acima de 6 filhos por mulher chegou ao nível de reposição (2,1 filhos) em 2005 e encontra-se ao redor de 1,8 a 1,9 filhos por mulher, segundo, respectivamente, a Pesquisa Nacional de Demografia e Saúde (PNDS-2006) e a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD-2008). Contudo, as taxas médias nacionais são incapazes de mostrar os diferenciais de fecundidade existentes no país. Segundo Berquó e Cavenaghi (2004), as mulheres com até 3 anos de estudo e com renda domiciliar per capita de até ¼ do salário mínimo apresentavam, no ano 2000, taxas de fecundidade acima de 5 filhos por mulher, enquanto aquelas com 9 ou mais anos de estudo e renda domiciliar per capita superior a ½ salário mínimo já apresentavam fecundidade abaixo do nível de reposição. Entre as adolescentes e jovens de 15 a 19 anos de idade os diferenciais de fecundidade, em 2007, variavam em mais de dez vezes, conforme os indicadores sociodemográficos utilizados (Cavenaghi e Alves, 2009).
Reconhecendo que a população pobre tem menor acesso aos métodos de regulação da fecundidade, o Ministério da Saúde lançou, em 11 de fevereiro de 1999, a Portaria nº 048 com o objetivo de estabelecer normas de funcionamento e mecanismos de fiscalização para execução de ações de planejamento familiar pelas instâncias gestoras do Sistema Único de Saúde. O Governo Federal passou a se comprometer com um suprimento crescente de métodos contraceptivos e a sua disponibilidade para estados e municípios.
Nesta mesma linha de atuação, o governo de Luiz Inácio Lula da Silva, por meio do Ministério da Saúde e da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SPM) lançou, em 2005 a “Política Nacional de Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos” cujos objetivos são: a) Ampliação da oferta de métodos anticoncepcionais reversíveis no SUS – o Ministério da Saúde se responsabiliza pela compra de 100% dos métodos anticoncepcionais para os usuários do SUS (até então, o Ministério era responsável por suprir de 30% a 40% dos contraceptivos – ficando os outros 70% a 60% a cargo das secretarias estaduais e municipais de saúde); b) Ampliação do acesso à esterilização cirúrgica voluntária no SUS, aumentando o número de serviços de saúde credenciados para a realização de laqueadura tubária e vasectomia, em todos os estados brasileiros; c) Introdução de reprodução humana assistida no SUS (Brasil, 2005 e 2006).
Em 2007, o governo Federal lançou a “Política Nacional de Planejamento Familiar”, que tem como meta a oferta de métodos contraceptivos de forma gratuita para homens e mulheres em idade reprodutiva e estabelece também que a compra de anticoncepcionais será disponibilizada na rede Farmácia Popular (UNFPA, 2008).
Embora a “Política Nacional de Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos” (2005) e a “Política Nacional de Planejamento Familiar” (2007) tenham uma concepção coerente e com base em direitos, ainda existem dificuldades para o acesso universal à saúde reprodutiva no Brasil, conforme estabelece a meta 5B dos Objetivos do Desenvolvimento do Milênio (ODM). Estas políticas ainda apresentam problemas para atender a demanda por métodos contraceptivos, especialmente das camadas mais pobres da sociedade e das comunidades mais distantes dos grandes centros urbanos.
As eleições gerais de 2010 são uma boa oportunidade para se discutir a questão dos Direitos Reprodutivos e da Universalização da Saúde Sexual e Reprodutiva no país. É preciso saber o que os candidatos e candidatas à Presidência da República pensam das altas taxas de gravidez indesejada no país e também do alto número de mulheres que desejam ter filhos e não conseguem por questões de infertilidade ou por falta de políticas de conciliação trabalho e família.
Existe fecundidade indesejada por falta e por excesso no Brasil. Neste último caso, resolver os problemas de logística para disponibilizar a quantidade adequada dos meios de regulação da fecundidade continua sendo tarefa imprescindível para reduzir a gravidez não desejada e não planejada e para libertar a sexualidade dos constrangimentos da reprodução intempestiva.
Clipping Bem Fam (01/06/010)
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