São Paulo – Depois de 30 anos dedicados à pesquisa no Instituto Butantan e à gestão da Fundação Butantan, entidade privada criada para administrar a produção e as finanças da instituição vinculada à Secretaria Estadual de Saúde, o médico e bioquímico Isaías Raw comunicou esta semana que agora é para valer: está mesmo deixando a instituição.
"Eu não tenho mais força. Já tentei mesmo não tendo autorização. Na realidade, nem eu nem minha família aguentamos mais o clima estabelecido aqui. Sou um boneco de ventríloquo que, quando não serve mais, se guarda no armário. Já dei o que tinha de dar. Reuni muita gente de bem comigo aqui nesses 30 anos", disse Raw a auditório lotado de trabalhadores dos setores administrativos, de pesquisa e de produção, que se reuniram a pedido dele próprio na manhã da última terça-feira.
Controverso, o pesquisador paulistano de 88 anos, que antes de vir para o Butantan em 1985 foi professor da USP e trabalhou em institutos de pesquisa nos Estados Unidos e Israel, manteve seu costumeiro tom ácido. Falou sobre seu trabalho à frente da instituição, onde criou um centro de biotecnologia, falou da grave crise financeira e não poupou críticas à atual direção da Fundação, que estaria fazendo mau uso das verbas que administra.
“Saímos de um buraco negro, chegamos no auge e voltamos a um buraco mais profundo, muito difícil. Não há nem como demitir os funcionários de áreas que não estão funcionando. A gente não tem dinheiro nem para demitir. É doloroso", lamentou, referindo-se à atual situação da instituição, sobre a qual a direção evita falar.
O site oficial do
Butantan dá a entender que há ali um amplo portfólio de itens em produção. E o próprio governador Geraldo Alckmin já chegou a afirmar diversas vezes, durante o auge do surto da dengue, que o Instituto já tem 50 mil doses da vacina – na verdade, ainda em fase de testes. No entanto, segundo Raw, não é bem assim. "Está sendo fabricada apenas a vacina da gripe. Eventualmente voltarão a ser feitos soros e não há ainda instalações para a produção da vacina da dengue em grande escala", disse.
Recompor o sistema de produção, que segundo ele foi desmontado para reformas exigidas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), exigiria um investimento inicial de R$ 300 a 400 milhões. “A questão é de confiança. A máquina tem de produzir de novo".
A solução da crise que, conforme acredita, não é responsabilidade somente da administração do Butantan, não é simples. "Ninguém vai dar esse dinheiro. O estado não tem, o governo federal não quer porque tem a Fiocruz. E não temos nenhuma propriedade que pertença à Fundação que pudesse ser usada como garantia para empréstimo. E nem sei se alguém vai dar um empréstimo na conjuntura atual”, disse.
Os problemas administrativos na Fundação – que atingem em cheio o Instituto por ela administrado – começaram a aparecer no final de 2009, quando o Ministério Público encontrou desvios de recursos de pelo menos R$ 35 milhões – valor que pode ter passado de R$ 100 milhões.
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- De saída: Isaias Raw dirigiu a Fundação e o Instituto Butantan. Foto: Tatiana Villa/Governo do Estado de São Paulo
O ex-diretor não perdeu a chance de alfinetar a atual gestão quanto ao inchaço do quadro de funcionários – 1.500, segundo ele – apesar da baixíssima produção.“Se você descontar 1.500 funcionários, pagos, ganhando besteiras do serviço de recursos humanos, loção de barba e outras bobagens maiores, perua, comida, nem sobra (dinheiro) pra fazer (vacinas e soros). Já produzimos com 300 funcionários; claro que não precisa ser 500 hoje. Mas não precisa ser 1.500”, critica.
Questionado sobre a falta de transparência e gastos na Fundação, ele não descarta novos desvios. O dinheiro estaria indo pra lata de lixo? “Acho que não está sendo roubado; acho. Talvez até esteja sendo roubado, mas o desvio já houve em 2009. (Hoje) tem bobagem. Não tem nenhuma empresa que aluga mil impressoras. Você põe uma impressora por andar. Alguém ganhou nisso aí.. Mas eu posso provar? Não posso provar".
Para o ex-diretor, porém, a Fundação não é a única responsável pela grave situação, de difícil solução. "O governo federal que não quer a concorrência do Butantan para Farmanguinhos (ligado à Fiocruz), há manobras comerciais da indústria multinacional e o governo do estado tem seus problemas públicos. A questão não é descobrir quem errou, mas como sair do buraco.”
Atualmente, o Instituto é dirigido pelo médico Jorge Kalil, que acumula a presidência da Fundação Butantan e tem entre os conselheiros da diretoria o economista André Franco Montoro Filho, ex-secretário de Economia e Planejamento nas gestões Mario Covas e Geraldo Alckmin (1995-2002), com papel de destaque no chamado processo de ajuste e disciplina fiscal e no Programa de Desestatização do Estado de São Paulo (PED). Montoro filho também integra o conselho diretor da Fundação.
“O Butantan é diferente. É o único público que sobrou. A Fundação Ezequiel Dias, de Minas Gerais, envasa a vacina que compra. Derreteu-se a ideia de independência e inovação. As multinacionais aprenderam a manter o nome porque quando se muda cria-se um problema. Existe hoje um novo domínio desse cartel, o que para mim é inaceitável. Vou a uma reunião da Organização Mundial da Saúde e se levanta apenas uma pessoa em nome dos cinco maiores laboratórios. É um cartel.”
Aplaudido de pé, Isaias Raw conclamou os trabalhadores a lutar pela instituição. “Salvar o Butantan depende da comunidade, mesmo que contra o diretor, contra o secretário. Já dei o que tinha de dar”.
Justiça rejeita liminar do Butantan contra associação de servidores
A juíza Carmen Cristina Fernandez Teijeiro e Oliveira, da 5ª Vara de Fazenda Pública de São Paulo negou o pedido de liminar do Instituto Butantan, que quer que a Associação dos Servidores do Instituto Butantan (Asib) altere seu endereço no Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica (CNPJ). Desde que foi constituída, em 1978, a Asib tem o mesmo endereço do Instituto, que mais tarde passou a sediar também a Fundação. A decisão foi publicada no último dia 29 de maio.
A magistrada entendeu não haver perigo de dano irreparável e que o endereço do Instituto Butantan, que consta dos estatutos sociais da associação há vários anos, não causa qualquer prejuízo direto e irreparável ao erário. Ela ressaltou ainda que os documentos do processo dão conta de que a Associação funciona no local, e de que detém espaço próprio para tal finalidade.
A Asib, no entanto, praticamente existe só no papel. Há cinco anos, a Fundação Butantan tomou de volta a casa onde funcionava a sede e a demoliu. Em seu lugar, começou a construir um prédio com recursos do governo federal, onde seriam abrigados laboratórios. A obra não chegou a ser concluída e o mato começa a tomar conta do esqueleto do prédio.
Sem espaço, o jeito foi espalhar documentos, móveis, computadores e algumas mesas de bilhar, que acabaram se perdendo. A Asib, que há 15 anos realizava atividades culturais e sociais, como as famosas festas juninas, que atraíam muita gente do bairro, reúne hoje cerca 350 associados – o número foi diminuindo com a saída de servidores, que foram se aposentando.
"Esta é a segunda derrota da direção na Justiça para os trabalhadores em pouco tempo", comemora o presidente da entidade, Nivaldo Silvério da Silva, trabalhador do Museu Biológico. No começo de maio, a Justiça do Trabalho vetou demissões de trabalhadores até que seja julgado o mérito da greve deflagrada contra a mudança de sindicato imposta pela direção. "A Fundação quer enfraquecer os trabalhadores, mas acreditamos que vamos retomar nossa sede e voltar a atuar em benefício dos servidores e do Butantan".
Procurada pela reportagem, a direção da Fundação e do Instituto Butantan não se manifestou sobre a decisão da Justiça e nem sobre as declarações de Isaias Raw.
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