( A Mário Martins - 1944 )
Ninguém te vê. Nem o homem sério de óculos que se sentou
de pijama na cadeira de palhinha
na calçada de um subúrbio qualquer,
nem a mulher gorda que tira os óculos e chora por causa do
assassinato hediondo,
- o homem que matou seis filhos e bebeu veneno, -
ou pelos dez órfãos da mãe desesperada,
a mulher que se jogou na linha do trem e o trem repartiu na terra -.
Ninguém te vê. Nem o garoto que fuma escondido num lugar
mal cheiroso do colégio,
nem e menina de tranças que gosta de se sentar na ponta do
banco do bonde
e esquece a rua com as últimas histórias do impossível;
ninguém te vê, nem o rapaz que discute política na mesa do café,
nem a moça que procura o seu nome na crônica social,
onde a caridade fica muito mais bonita
e onde ela se sente muito mais humana...
Ninguém te vê.
Estás sentado na tua mesa, entre papéis dispersos, telegramas
de última hora,
a voz do secretário, o relâmpago do magnésio, a campainha do diretor,
a importância do homem que vai dar uma entrevista;
estás sentado na tua mesa, e escreves com a música dos linotipos
o ruído das máquinas datilográficas,
o vozerio dos companheiros que vão e vêm
a bandeja de café, a fumaça do cigarro, o cheiro de óleo,
- e na tua cabeça há uma prodigiosa procissão de coisas diversas
que se atropelam como os homens na rua
na mudança dos sinais. (Verde-vermelho-verde-vermelho
-verde-vermelho.)
Há presidente e chefes em Washington depois que o ladrão
assaltou o apartamento de Copacabana,
dois tiros, um aniversário, Marieta que cortou o pulso pela décima vez,
dez mil aviões desovando bombas, o jantar elegante no "grill" do cassino,
um fascista graúdo que tomou chumbo na cara, a mulher que teve quatro gêmeos,
a crônica sobre o vestido de Madame X, o político que promete um mundo melhor,
0 operário que caiu do 5 ° andar, o quilo de feijão a 3 cruzeiros,
Clark Gable que voltou da guerra, o último gol do América,
- tudo isto está na tua cabeça, que a tua cabeça é o mundo
debruçado sobre um bloco de papel...
Ninguém te vê. Mas tu vês o mundo, tu sentes o mundo, cada dia, cada noite,
captas o mundo, cada noite, cada dia,
e daqui a pouco, e amanhã bem cedo, terás milhões de olhos,
terás milhões de consciências,
porque te difundirás na multidão e andarás na multidão como os pés
no corpo ...
És tu que mudas todos os dias a alma das multidões,
dá-lhes novo alimento, nova água, novas preocupações, novas alegrias,
ou novos tormentos,
depois do sol, é a tua manchete que brilha mais, e que clareia e a rua,
e depois da noite, é a tua manchete que enluta o mundo e encobre os homens
Ninguém te vê. E existes e estás presente em toda parte como Deus,
nas ruas, nas batalhas, no avião que ronca no céu, no navio que não chegará,
na hora do fuzilamento, no recado para a família, nas barricadas.
nos subterrâneos inconquistáveis onde a liberdade se recolheu,
na festa do ministro, no banquete do político, na cadeia,
na praça onde a bomba estourou,
na escadaria onde falava o orador, no salão de baile,
no microfone não localizado,
na "première" da grande fita,
- tens mil olhos, mil ouvidos, mil almas, mil mãos,
estás em toda parte e ninguém te vê
até o momento em que explodes na rua como uma granada
e a tua voz é o hino de mil letras dos homens heterogêneos e dispersos...
Alma nova do mundo a cada novo dia. Música das ruas todos os instantes.
História efêmera que passa e a memória esquecerá
se os livros não lembrarem;
sem ti reduziríamos o mundo ao alcance dos nossos olhos,
e ficaríamos surdos e mudos, e de tal forma haveria silêncio
e deserto ao redor,
que nos julgaríamos de repente saídos de uma bomba-foguete
sobre a face da lua...
Sem ti o mundo de hoje seria como mastro sem bandeira
como bandeira sem vento, como rádio sem antena,
como cérebro sem pensamento, como bússola sem norte,
como morte sem vida
como vida sem morte...
Sem ti, o mundo seria mundos
muitos mundos, o meu, o teu, o dele, mundinhos de cada um,
nunca um mundo só, nosso mundo, imenso mundo, mandão,
que sai da tua cabeça
e escorre da tua mão!
( Poema de JG de Araujo Jorge - do livro
" O Canto da Terra " 1a edição - 1945 )
Fui ser feliz e não volto..."
(por Fran Zorzaneli)
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