Por causa dessa imparcialidade não é permitido ao Estado laico impor, em matéria controversa de ética, comportamentos derivados de ditames ou dogmas de uma religião, mesmo dominante. Ao entrar no campo político e ao assumir cargos no aparelho de Estado, não se pede aos cidadãos religiosos que renunciem a suas convicções religiosas. O único que se cobra deles é que não pretendam impor a sua visão a todos os demais nem traduzir em leis gerais seus próprios pontos de vista particulares. A laicidade obriga a todos a exercer a razão comunicativa, a superar os dogmatismos em favor de uma convivência pacífica e diante dos conflitos buscar pontos de convergência comuns. Nesse sentido, a laicidade é um princípio da organização jurídica e social do Estado moderno.
Subjacente à laicidade há uma filosofia humanística, base da democracia sem fim: o respeito incondicional ao ser humano e o valor da consciência individual, independente de seus condicionamentos. Trata-se de uma crença, não em Deus como nas religiões que melhor chamaríamos de fé, mas de crença no ser humano em si mesmo, como valor. Ela se expressa pelo reconhecimento do pluralismo e pela convivência entre todos.
Não será fácil. Quem está convencido da verdade de sua posição, será tentado a divulgá-la e ganhar adeptos para ela. Mas está impedido de usar meios massivos para fazer valê-la aos outros. Isso seria proselitismo e fundamentalismo.
Laicidade não se confunde com laicismo. Este configura uma atitude que visa a erradicar da sociedade as religiões, como ocorreu com o socialismo de versão soviética ou por qualquer motivo que se aduza, para dar espaço apenas a valores seculares e racionais. Este comportamento é religioso ao avesso e desrespeita as pessoas religiosas.
Setores de Igreja ferem a laicidade quando, como ocorreu entre nós, aconselharam a seus membros a não votarem em certa candidata por apoiar a descriminalização do aborto por razões de saúde pública ou aceitar as uniões civis de homossexuais. Essa atitude é inaceitável dentro do regime laico e democrático que é o convívio legítimo das diferenças.
A ação política visa a realização do bem comum concretamente possível nos limites de uma determinada situação e de certo estado de consciência coletivo. Pode ocorrer que, devido às muitas polêmicas, não se consiga alcançar o melhor bem comum concretamente possível. Neste caso é razoável, também para as Igrejas, acolher um bem menor ou tolerar um mal menor para evitar um mal maior.
A laicidade eleva a todos os cidadãos religiosos a um mesmo patamar de dignidade. Essa igualdade não invalida os particularismos próprios de cada religião, apenas cobra dela o reconhecimento desta mesma igualdade às outras religiões.
Mas não há apenas a laicidade jurídica. Há ainda uma laicidade cultural e política que, entre nós, é geralmente desrespeitada. A maioria das sociedades atuais laicas são hegemonizadas pela cultura do capital. Nesta prevalecem valores materiais questionáveis como o individualismo, a exaltação da propriedade privada, a lassidão dos costumes e a magnificação do erotismo. Utilizam-se os meios de comunicação de massa, a maioria deles propriedade privada de algumas famílias poderosas que impõem a sua visão das coisas.
Tal prática atenta contra o estatuto laico da sociedade. Esta deve manter distância e submeter à crítica os "novos deuses”. Estes são ídolos de uma "religião laica” montada sobre o culto do progresso ilimitado, da tecnificação de toda vida e do hedonismo, sabendo-se que este culto é política e ecologicamente falso porque implica a continuada exploração da natureza já degradada e a exclusão social de muita gente.
Mesmo assim não se invalida a laicidade como valor social.
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Jandira Queiroz
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