A face impiedosa de madre Teresa
Descaso
com os doentes, ligações com ditadores e corruptos, moral dúbia: estudo
reúne documentos que mostram um lado pouco nobre da biografia da
religiosa que está às portas da canonização
João Loes e Suzana Borin
Isto É
POLÊMICA
Sinônimo de caridade no séc. XX, Madre Teresa tem sua
obra social contestada por pesquisadores canadenses
Há décadas, Madre Teresa de Calcutá é símbolo das mais elevadas causas
humanas. Das centenas de sedes de sua congregação, as “Missionárias da
Caridade” espalhadas pelo mundo, surgem relatos do cuidado dado aos
pobres, excluídos, órfãos e moribundos. Publicamente, a missionária,
que morreu em 1997 aos 87 anos, é mais do que um modelo a ser seguido.
Dona de um Prêmio Nobel da Paz, conquistado em 1979, e elogiada por
presidentes, papas e personalidade de alto quilate, ela foi beatificada
em 2003 e está a caminho da santificação. Uma referência no céu e na
terra, portanto. “Mas nem todos veem Madre Teresa e sua história com
bons olhos”, revela Geneviève Chénard, pesquisadora em educação da
Universidade de Montreal, no Canadá. Co-autora de uma pesquisa inédita
que expõe uma face pouco conhecida da religiosa, Geneviève reviu, com
dois colegas, 287 documentos sobre a freira e descobriu uma nova Madre
Teresa, bem menos elogiável e nobre do que a que já se conhece. “Foi
uma surpresa até para mim”, admite a estudiosa, que esperava encontrar
críticas mais duras, mas não antecipava a enxurrada de acusações com as
quais se deparou.
De acordo com os pesquisadores, as discrepâncias entre a realidade
e a biografia heroica da candidata à santa vão da administração das
sedes das congregações das Missionárias da Caridade à natureza da fé de
Madre Teresa. “Vimos, por exemplo, que a congregação era pouco
criteriosa na hora de aceitar doações em dinheiro”, afirma Geneviève.
Da análise documental, a impressão que ficou é que, para a organização,
dinheiro era dinheiro, independentemente de onde vinha. Seguindo essa
lógica, Madre Teresa se associou a ditadores e famosos salafrários que,
nas horas vagas, se dedicavam à filantropia. De Jean-Claude Duvalier,
por exemplo, ditador do Haiti acusado de corrupção e violação de
direitos humanos, ela recebeu não só dinheiro, mas também uma
homenagem. Já com James Keating, nebuloso investidor do mercado
imobiliário americano de quem obteve patrocínio, a religiosa topou até
fazer foto. No auge da arrecadação, estima-se que a congregação tinha o
equivalente a R$ 102 milhões em caixa. “E o mais curioso é que, mesmo
com tanto dinheiro, as condições dos doentes nas sedes era terrível”,
diz Geneviève.
FILOSOFIA
Falta de higiene e de remédios era a política nas congregações da
religiosa, que dizia que o mundo ganhava com o sofrimento dos pobres
Aparentemente,
todo o dinheiro arrecadado ia para a expansão das obras e não para a
melhoria das condições de atendimento aos doentes nas instituições que
já funcionavam. E as condições eram terríveis. Relatos de médicos que
fizeram visitas aos centros de tratamento e cuidado geridos pela
congregação apontaram, além da falta higiene crônica, ausência de
equipamentos básicos para os cuidados prestados e tratadores sem
treinamento ou qualificação. Seringas eram lavadas com água fria de
torneira e doenças graves eram tratadas com analgésicos simples, como o
paracetamol. “Talvez esse descaso fosse parte da ética da religiosa,
que via o sofrimento dos outros como algo que os aproximava de Cristo”,
diz Geneviève. Em mais de uma ocasião Madre Teresa celebrou a dor como
algo que enobrece. “O mundo ganha com esse sofrimento”, chegou a dizer.
Curiosamente, quando adoecia, ela não se tratava nos centros geridos
por ela, mas sim em hospitais de ponta na Índia e nos Estados Unidos.
Nos documentos levantados pelos canadenses, mais casos dessa ética
eletiva são arrolados. Por exemplo, embora dura e inflexível,
publicamente, em suas opiniões contra o divórcio, Madre Teresa fez
vista grossa para o fim do casamento de Lady Diana, que, mesmo tendo se
separado do príncipe Charles, continuou entre as preferidas da
religiosa. “Diana foi uma grande patrocinadora das Missionárias da
Caridade. Será que é por isso que ela continuou sendo recebida e
elogiada?”, diz Geneviève.
Também
recaem dúvidas sobre o milagre reconhecido pelo Vaticano, que fez de
Madre Teresa beata. Segundo os canadenses, o time de médicos que tratou
a miraculada, a indiana Monica Besra, tem explicação científica para a
cura do suposto tumor que ela tinha no abdome. Para eles, a massa, na
realidade, nunca foi um tumor, mas sim um cisto, e ele desapareceu
depois de nove meses de tratamento. “É de se imaginar que o Vaticano já
conheça os argumentos contrários à canonização de Madre Teresa”, diz a
irmã Célia Cadorin, responsável pelos processos que resultaram na
canonização de São Frei Galvão e da Santa Madre Paulina. E se o
processo continua correndo, é porque, aos olhos do Vaticano, as
virtudes da missionária são mais fortes que seus eventuais deslizes.
Fotos: TEKEE TANWAR; Terry Fincher.Photo Int / Alamy; CORBIS; AP Photo/Bebeto Matthews
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