No
último dia 1º de dezembro, Dia Mundial de Luta Contra a AIDS, o Ministério da
Saúde divulgou um novo boletim sobre a Aids no Brasil. No evento de lançamento
do boletim, realizado no Rio de Janeiro, foram anunciadas novas medidas de
enfrentamento da epidemia, que são parte do novo Protocolo Clínico de
Tratamento de Adultos com HIV e AIDS. Entre as
novas medidas anunciadas, está a ampliação do tratamento com antirretrovirais
na rede pública para todos os adultos com o HIV, independentemente da contagem
das células de defesa do organismo - CD4. De acordo com a diretriz anterior,
apenas pacientes com menos de 500 CD4 por milímetro cúbico de sangue eram
elegíveis ao tratamento. As novas diretrizes estão alinhadas com as novas
tendências mundiais de tratamento recomendadas pela Organização Mundial de
Saúde (OMS).
Estima-se que há 718
mil pessoas com HIV no Brasil, entre as quais 150 mil não sabem que estão com o
vírus. O desconhecimento sobre a própria infecção é bastante grave e o início
tardio do tratamento faz com que muitas pessoas morram no primeiro ano após o
diagnóstico. Mortes que poderiam ser evitadas se o tratamento for iniciado mais
cedo.
A política “testar
e tratar”, que objetiva a ampliação de acesso a diagnóstico e tratamento, é
bem-vinda. No entanto, algumas preocupações devem ser levadas em consideração
para que sua implementação seja feita de forma a garantir os direitos humanos,
e não promover sua violação. Vale lembrar que uma política baseada nos direitos
humanos e com constante participação da sociedade civil em todas as fases de
elaboração e implementação é o que fez com que o programa brasileiro de combate
à Aids fosse visto como uma política de sucesso em todo o mundo. Sem isso, os
retrocessos que já começam a aparecer poderão colocar todo o sucesso obtido em
risco.
As iniciativas
governamentais de testagem do HIV ainda excluem os grupos mais atingidos pela
epidemia, que seguem sem acesso ao teste. Muitos tem receio de realizar o teste
com medo do preconceito que muitas vezes ainda acompanha o diagnóstico. As
recentes censuras de campanhas e materiais de prevenção é um grave sinal de que
o governo está retrocedendo no combate ao preconceito e ao estigma social
relacionado à Aids. O combate ao preconceito é central na luta contra a
Aids.
A ampliação da oferta
de teste de diagnóstico deve ser feita dentro de parâmetros social e
cientificamente estabelecidos, que prevê aconselhamento pré e pós testagem, e
sempre de forma voluntária e com total sigilo e privacidade. Assim,
iniciativas como testagem em megaeventos e disponibilidade de teste de baixo
custo em farmácias são preocupantes. Ademais, pouco adianta receber o
diagnóstico positivo e não ter acesso a serviços de saúde necessários ao
tratamento. O longo tempo de espera para a primeira consulta e a falta de
atendimento especializado no sistema público de saúde são inaceitáveis.
Ainda, acreditamos que
o tratamento com medicamentos antirretrovirais deve ser disponibilizado para
todas as pessoas vivendo com HIV, mas a decisão sobre o início do tratamento
cabe apenas a própria pessoa, após recebimento de todas as informações
disponíveis sobre os benefícios e os riscos do tratamento. Principalmente no
que se refere ao “tratamento como prevenção”, devemos ressaltar que o
tratamento deve sempre visar o benefício clínico para a pessoa e o
consequente aumento de sua qualidade de vida. A pessoa vivendo com HIV não pode
ser tratada como um transmissor do vírus. Assim, a decisão sobre o início do
tratamento com antirretroviral, especialmente nos casos de pessoas
assintomáticas, com contagem de CD4 superior a 500 ou soronegativas, deve ser
feita respeitando a autonomia do indivíduo, sem coerção ou julgamento moral
sobre sua decisão. Ademais, o tratamento antirretroviral não pode ser visto
como único meio de prevenção. A política de prevenção deve ser combinada
e outras formas de redução da transmissão do vírus, como o uso de
preservativos, não podem ser deixadas de lado.
Ademais de todas as
preocupações mencionadas, acreditamos que mais uma pergunta deve ser feita: A
nova política de tratamento para AIDS é sustentável? Caso todas as
pessoas elegíveis para tratamento optem por iniciar imediatamente o uso de
medicamentos antirretrovirais, teremos recursos financeiros disponíveis para
garantir acesso a tratamento universal e gratuito para todos?
Um grande desafio para a
sustentabilidade do sistema público de saúde tem sido o aumento dos custos dos
tratamentos devido à utilização de novos medicamentos protegidos por patentes.
As patentes conferem direitos de exclusividade a seus detentores. Assim, o
titular da patente pode vender o produto em situação de monopólio com preço
elevado, o que dificulta a viabilidade de políticas públicas de acesso a
medicamentos.
Segundo dados do
Ministério da Saúde, atualmente 313 mil pessoas recebem medicamentos
antirretrovirais no Brasil. Segundo as estimativas, outras 100 mil devem
iniciar o tratamento em 2014, um aumento de 32%. No entanto, o aumento no
orçamento total do Ministério da Saúde para o programa de Aids será de menos de
20%, passando de 1,1 para 1,3 bilhão. Em 2013, R$ 770 milhões (66% do
orçamento) foram destinados apenas para a compra de medicamentos. Em 2005,
quando o gasto com medicamentos chegou a R$ 986
milhões, principalmente em razão da incorporação de medicamentos
patenteados com preços elevados, o Ministério da Saúde declarou publicamente
que a política de aids estava em risco no Brasil. Atualmente, o preço dos
medicamentos, especialmente os de segunda e terceira linha, está novamente em
patamares muito elevados. E o governo pouco tem feito para mudar essa situação.
No início da epidemia
de Aids, o Brasil teve um papel de vanguarda ao provar para o mundo que o
tratamento das pessoas com HIV/Aids era possível. O acesso a tratamento antirretroviral
foi em grande parte possibilitado pela fabricação nacional dos medicamentos, a
preços muito mais baixos do que os praticados pelos laboratórios
multinacionais. Mas também em 1996, o Brasil alterou sua lei de propriedade
industrial e os medicamentos mais novos passaram a ser protegidos por patentes,
o que impede a produção local ou a importação de medicamentos genéricos a
preços mais baixos. Algumas medidas poderiam ser adotadas pelo governo para
minimizar o impacto negativo das patentes no acesso a medicamentos e assegurar
a sustentabilidade de políticas públicas de acesso a saúde, mas atualmente
pouco tem sido feito nesse sentido. Em 2007, foi emitida uma licença
compulsória para o medicamento antirretroviral efavirenz, a primeira e única
licença compulsória no Brasil. Com essa medida, o Brasil economizou em 5 anos
mais de R$ 200 milhões, com a importação do medicamento genérico e posterior
produção nacional pelo laboratório público Farmanguinhos. Apesar do sucesso da
licença compulsória, o governo optou por deixar de lado a utilização dessa
medida de proteção para a saúde e adotar uma estratégia comercial baseada na
negociação de licenças voluntárias com os titulares das patentes, por meio das
Parcerias para o Desenvolvimento Produtivo (PDPs). Apesar das declaradas boas
intenções, os benefícios das PDPs para as políticas de saúde ainda são uma
aposta, cercada de promessas governamentais.
Ainda, estão em tramitação na Câmara dos Deputados
diferentes projetos de lei que visam uma revisão da lei de patentes sob a
perspectiva de defesa do interesse público. A aprovação dessas alterações
dotariam o Brasil de medidas que, assim como a licença compulsória, poderiam
beneficiar o acesso a medicamentos e a sustentabilidade de políticas públicas
de saúde. A reforma da lei de patentes é um passo fundamental, mas de nada
adianta a previsão legislativa se não houver real vontade política para
utilização dessas medidas.
A disponibilização de tratamento para todos os que
queiram inicia-lo é uma iniciativa louvável, mas deve ser acompanhada de outras
medidas para que seja efetiva e sustentável. O sistema internacional de
propriedade intelectual permite aos países adotarem medidas de proteção ao
direito à saúde. O sistema internacional de direitos humanos impõem aos países
a obrigação de utiliza-las. No Dia Mundial de Luta contra a Aids, esperamos que
o governo se lembra que apenas uma política baseada nos direitos humanos pode
ser efetiva para o combate à epidemia.
O Grupo de Trabalho sobre Propriedade Intelectual da
Rede Brasileira pela Integração dos Povos (GTPI/Rebrip) é um grupo formado por
organizações da sociedade civil, pesquisadores e ativistas que há 10 anos
defende uma perspectiva de interesse público no debate sobre acesso a
medicamentos. Desde 2003, desenvolve atividades voltadas para a
diminuição dos impactos negativos das patentes sobre políticas públicas de
saúde no Brasil e no Sul Global. Saiba mais sobre nossa atuação em: www.deolhonaspatentes.org.br.
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