A
homossexualidade era entendida como uma doença mental até
1973 e estava no mesmo grupo que necrofilia, pedofilia, zoofilia e
outras mais pela chamada “Bíblia da psiquiatria”: o
“Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos
Mentais” (DSM). Uma forte reação de acadêmicos
e ativistas conseguiu na época remover o termo do manual.
Quarenta anos depois, a mesma publicação, que
influencia profissionais de todo o mundo, realizará outra
grande mudança. A partir do ano que vem, os transgêneros
— grupo que inclui travestis, drag
queens,
transformistas e transexuais — serão retirados da
classificação de doenças mentais.
A
revisão da Associação Americana de Psiquiatria
(APA), que coordena o manual com o apoio de 1.500 especialistas de 39
países, vem na esteira de recentes mudanças legais
sobre os direitos dos homossexuais. Em 2010, o governo francês
retirou a transexualidade das patologias psiquiátricas. Nesta
semana, a Câmara de Deputados do Uruguai aprovou o casamento
gay, e o projeto será enviado ao Senado. A lei já vale
para Argentina, Islândia, Portugal, Suécia, Noruega,
entre outros. No Brasil, a Justiça analisa caso a caso.
A
médica e política americana Dana Beyer, transexual e
ativista da causa, há uma década está no grupo
de trabalho para a revisão do DSM-5, que foi aprovado este mês
e será publicado em maio de 2013.
—
Houve
grande resistência nos primeiros anos por pesquisadores mais
velhos e conservadores, mas isto foi diminuindo ao longo dos anos —
comentou Dana por email. — Muitas das mudanças foram
impulsionadas na última década pelo reconhecimento de
que nós, gays e transgênero, nascemos assim.
Dana
lembra que, apesar da remoção da homossexualidade do
DSM-2, de 1973, o termo continuou presente como uma subcategoria, a
“homossexualidade egodistônica”, até 1987. Já
o DSM-5 trocou o Transtorno de Identidade de Gênero por
Disforia de Gênero, entendida como uma condição,
e não mais um transtorno. Manteve ainda o “distúrbio
transvéstico” (antes fetichismo transvéstico).
—
Precisamos
removê-lo na próxima revisão — afirmou Dana. —
A principal diferença é que a decisão de 1973
foi o que impulsionou o movimento gay, já essa revisão
é uma aproximação da conclusão do
movimento de direitos civis dos transgêneros.
Sociedade
secreta e ativismo da história da APA
Já
para a professora do Instituto de Medicina Social da Uerj, Jane
Russo, que atua na área de gênero, sexualidade e saúde,
a alteração na verdade mostrou que o movimento gay já
estava forte naquele período:
—
Em
1969, marca-se o surgimento do movimento gay, e em 1970, o grupo
começou a pressionar a APA. Eles compareciam em congressos
anuais da associação e faziam manifestações,
não violentas, mas assertivas.
Jana
conta que até este período, os próprios
psiquiatras escondiam a sua orientação sexual.
—
Não
tinha um veto oficial, nada que proibisse um psiquiatra de ser
homossexual, mas era mal visto. Exatamente porque a homossexualidade
era considerada uma doença mental — explica ela.
Na
época, inclusive, um grupo de psiquiatras homossexuais
integrantes da APA reunia-se numa espécie de sociedade
secreta. Jana explica, no entanto, que esta entidade tinha pouca
participação política, e era mais um grupo de
encontros sociais. Num dos congressos da associação, em
1972, ela conta que um psiquiatra envolto numa capa e com a cabeça
coberta se declarou publicamente gay. O “Dr. Anônimo”, como
se denominou, revelou que mais de 200 membros da APA eram
homossexuais e que se encontravam secretamente.
A
questão da homossexualidade no DSM é considerada uma
das mais controversas de sua história, que teve início
em 1952, segundo o ex-presidente da Associação
Americana de Psicologia e professor de Psicologia da Universidade
Temple (EUA), Frank Farley.
—
As
questões de gênero e a homossexualidade na história
do DMS sempre foram negativas. A Ciência progressivamente vem
mostrando que não existem diferenças confiáveis
e válidas relacionadas ao gênero. Existem muitos
estereótipos sobre este tópico — disse Farley, por
email.
Psiquiatras
“tratavam” comportamento gay
Apesar
da revisão sobre homossexualidade, foi somente em 1992 que a
Organização Mundial de Saúde (OMS) alterou o
termo na sua Classificação Internacional de Doenças
(CID) — também passando por reformulação e com
aprovação prevista para 2015. Ambos os guias servem de
bases para profissionais de saúde e pesquisadores.
A
mudança foi oficializada na década de 1980 pela
Sociedade Brasileira de Psiquiatria, que alterou a associação
da homossexualidade com uma doença. Já em 2008, o
Sistema Único de Saúde (SUS) regulamentou a cirurgia de
mudança de sexo.
Coordenadora
do Programa de Estudos em Sexualidade da USP, a psiquiatra Carmita
Abdo afirma que antes do anos 70, também no Brasil, os
homossexuais eram condicionados a manifestar atração
pelo sexo oposto:
—
Como
isto acabava levando os indivíduos a quadros de depressão,
surtos psicóticos e suicídios, os pesquisadores
começaram a questionar se era realmente um tratamento
adequado.
Carmita
explica que a tendência da psiquiatria hoje é
compreender a homossexualidade (e não homossexualismo, termo
que remete à doença) como uma orientação
que incide menos do que a heterossexualidade, mas que não é
patológica, ou seja, “é apenas uma característica”,
afirma.
—
A
sexualidade não é estática. Ela acompanha as
mudanças sociais e culturais — comenta Carmita, que
relembra. — No início do meu trabalho, há 35 anos, eu
recebia homossexuais querendo mudar sua orientação.
Hoje eu recebo pais, geralmente de adolescentes, não para
mudar a cabeça do filho, mas para poderem entender e aceitar
melhor a situação, saber como conduzi-la.
Hoje
o transexual é o que considera ter nascido no sexo errado,
segundo entendimento da psiquiatria.
Distúrbios
de personalidade, autismo e traumas
Além
das mudanças relacionadas aos transgêneros, a quinta
edição do Manual Diagnóstico de Transtornos
Mentais (DSM-5), que será publicada em maio de 2013,
restruturou também outros pontos de seus 20 capítulos.
Ainda na área de sexualidade, a pedofilia terá os
mesmos critérios de diagnóstico, mas será
denominada como transtorno de pedofilia.
O
DSM-5 manterá as dez síndromes que figuram no grupo de
distúrbios de personalidade, entre elas, borderline,
personalidade antissocial, obsessivo-compulsivo etc. Apesar de
populares nas prateleiras de autoajuda, especialistas criticavam a
dificuldade de diagnóstico destes. Na revisão, desta
forma, será incluída um seção para
encorajar novos estudos nas formas de diagnóstico clínico
destes indivíduos.
—
O
DSM tem uma abordagem melhor do que a que era utilizada antes de ele
ser desenvolvido, já que ele tenta sistematizar e organizar os
tópicos dos diagnósticos. Isto era necessário
naquele momento. Mas ele tem uma desvantagem, entre muitas outras,
que é o fato de suas bases científicas serem muito
fracas, prejudicando seu uso em vários pontos — comentou o
ex-presidente da Associação Americana de Psicologia e
professor de Psicologia da Universidade Temple (EUA) Frank Farley.
Os
distúrbios pós-traumáticos terão mais
atenção no DSM-5. Além de três, serão
quatro diferentes transtornos, com especial foco em crianças e
adolescentes.
Além
disso, como militantes e alguns especialistas temiam, o autismo
passará e figurar como espectro autista, num único
quadro de transtorno. Isto acarreta na reuniam de outros distúrbios
e leva ao desaparecimento de algumas síndromes, como a de
Asperger. Em vez disso, haverá gradações, de
leve a grave, dos sintomas autistas.
“Com
os avanços da clínica e do conhecimento científico,
as mudanças eram inevitáveis”, justificou, num
comunicado oficial, o presidente da Associação de
Psiquiatria Americana, Dilip Jeste.
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