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26/03/2010
Folha de S.Paulo: Reportagem com pessoas que vivem com HIV/aids há mais de duas décadas é destaque no caderno Equilíbrio
25/03/2010 - 10h
O caderno Equilíbrio da Folha de S.Paulo tem como destaque desta quinta-feria, 25 de março, reportagem com pessoas que vivem com HIV/AIDS há mais de duas décadas. A escritora Valéria Polizzi, o cabeleireiro Hugo Hagström e o ativista José Araújo contam as mudanças que o surgimento da terapia com ANTIRRETROVIRAIS, 25 anos atrás, trouxe para a vida deles. Leia a seguir.
Positivo e operante
25 anos após os testes do primeiro remédio para combater a AIDS, três portadores do vírus HIV contam como é ter a doença há mais de duas décadas
RACHEL BOTELHO
DA REPORTAGEM LOCAL
No princípio, era o fim. Há 25 anos, quando o primeiro medicamento para tratar pacientes com HIV começou a ser testado, o diagnóstico da doença equivalia a uma sentença de morte. Desde que surgiram os primeiros pacientes da epidemia, em 1981, o AZT era a primeira e única esperança para os infectados.
Apesar da boa notícia, perderam-se muitas vidas até que o remédio se tornasse acessível. A distribuição gratuita no Brasil começou em 1991, mas, até meados da década de 90, o tratamento era para poucos.
"Ou o sujeito tinha muito dinheiro e comprava de importadores ou contava com iniciativas isoladas de algumas prefeituras", lembra Esper Kallas, infectologista da USP.
Além disso, o AZT estava longe de ser uma panaceia. A dosagem prescrita na época, o dobro da atual, provocava efeitos colaterais como anemia e intolerância gastrointestinal e deixava de agir após um ano, em média. "Houve grande resistência ao tratamento [por parte dos pacientes]. Na maioria dos casos, nem eu me convenci de seu impacto", afirma o oncologista Drauzio Varella, que tratou alguns dos primeiros doentes de AIDS do país.Rosa Alencar, da Coordenação Estadual de DST-AIDS, concorda. "O AZT teve um impacto relativo porque não trazia melhora sustentada."
Até o grande salto no combate ao problema, que o colocou no patamar das doenças crônicas em que se encontra hoje, passaram-se dez anos. Em 1995, o desenvolvimento dos primeiros inibidores de protease -drogas que agem em um estágio avançado da multiplicação do vírus nas células de defesa- mudou todos os paradigmas de tratamento. "A evolução foi absolutamente inacreditável", afirma Varella.
Nessa época, o exame de carga viral possibilitou uma avaliação mais acurada da progressão da doença, ajudando a definir o melhor momento de iniciar o tratamento. "Pela primeira vez, conseguimos deixar pessoas com a carga viral indetectável. Muita gente hoje é sobrevivente desses dias", diz Kallas.
No ano seguinte, a lei de acesso universal aos ANTIRRETROVIRAIS foi aprovada, alçando o Brasil ao posto de protagonista mundial na luta contra a AIDS.
Segundo a Unaids, braço da ONU para o tema, as mortes decorrentes da doença caíram 18% desde o lançamento dos coquetéis, mas a transmissão está longe de ser interrompida.
No Brasil, onde 700 mil pessoas carregam o vírus, menos da metade sabe que é portadora. "Aqui, 16% dos pacientes morrem no primeiro ano porque o diagnóstico está sendo feito tarde", diz Kallas.
Com a ameaça de morte mais distante, os próximos desafios incluem ampliar o diagnóstico e minimizar os efeitos colaterais da medicação.
Se as conquistas nessa área continuarem no rumo certo, mais pessoas poderão viver com o vírus pelos próximos 25 anos ou mais -assim como Hugo Hagström, Valéria Polizzi e José Araújo, que falam de suas vidas com o HIV a seguir.
Não penso no futuro
Desde 1997, quando lançou o livro "Depois Daquela Viagem" (ed. Ática, 279 págs., R$ 32), no qual relata sua experiência como portadora do HIV, Valéria Piassa Polizzi é um nome familiar para adolescentes e adultos que aprenderam com ela os riscos da infecção.
Adotado pelas escolas, o livro teve mais de 300 mil exemplares vendidos e foi traduzido em diversos países. Desde aquela época, a garota que recebeu a notícia de que não viveria mais do que seis meses no auge de sua juventude percorreu o Brasil dando palestras, viajou pelo mundo, casou, separou, escreveu outros dois livros e concluiu uma faculdade.
Aos 39 anos, Valéria convive com o vírus da AIDS há 23 -foi contaminada nas primeiras relações sexuais, por um namorado. "Era uma doença de homossexuais masculinos, parecia muito distante da gente, meninas de classe média."
Soube que tinha o HIV por seu pai. "Diziam que vivia dez anos quem tinha muita sorte. A vida foi parando. Fiz três meses de faculdade e larguei. Pensava: "Não vai dar tempo de acabar"."
Pouco depois de voltar de uma viagem aos EUA, Valéria foi internada. O médico que a acompanhava havia indicado a hora de iniciar o tratamento, mas ela saiu do consultório e não voltou mais. ""Para que, se vou morrer de qualquer jeito?", pensava. Eu via o efeito colateral do AZT nas pessoas."
Aos 24 anos, passou um mês no hospital, com tuberculose renal, pela primeira e única vez.Depois de um ano, o médico suspendeu o AZT, que parava de fazer efeito. Nessa época, começou a escrever o livro.
Após um intervalo de quase dois anos sem medicação, o coquetel foi lançado e Valéria voltou a se tratar.
As viagens constantes eram o único plano que ela se permitia fazer. "Não conseguia pensar a longo prazo. Era, no máximo, para o mês que vem."
Quando ela tinha 26 anos, o livro foi publicado. Valéria viajou pelo país inteiro dando palestras e ganhou uma coluna em uma revista voltada para adolescentes.
Alguns anos depois, conheceu o ex-marido, "que era soronegativo e continua sendo", na Nova Zelândia. Depois de ficar três anos na Áustria, onde ele morava, voltaram ao Brasil. "Estava com 33 anos, não morri e não fiz faculdade. Queria estudar e me formei em jornalismo." Agora, dedica-se à pós-graduação em criação literária.
Valéria tem problemas renais e faz exercícios físicos para combater a lipodistrofia, um problema de má distribuição da gordura corporal que também eleva o colesterol e os triglicerídeos. Toma antidepressivos, como a maioria de seus amigos soropositivos.
Com a carga viral indetectável "há muito tempo", ela encara o HIV como doença crônica. "Vida normal que a gente fala é conseguir trabalhar, estudar, mas eu tenho uma doença. Está controlada, mas está aqui."
Mesmo tendo ultrapassado os prognósticos mais favoráveis, Valéria ainda acha difícil fazer planos de longo prazo.
O fim da negação
Em 1985, o cabeleireiro Hugo Hagström tinha 24 anos e uma DST (doença sexualmente transmissível) difícil de curar. Seus amigos que voltavam do exterior traziam notícias da "peste gay". Hugo uniu uma informação a outra e achou prudente fazer o exame. "Disseram que eu tinha mais seis meses de vida. Saí desnorteado e passei três anos tentando negar a doença, porque não tinha sintomas", recorda-se.
Por mais de uma década, viveu à espera da morte, intercalando fases de adesão ao tratamento com outras de abandono, até que essa atitude cobrou seu preço. "Não conseguia me alimentar e entrei em estado terminal, mas, por sorte, foi quando surgiu o coquetel."
Após quatro meses de internação, saiu do hospital sem falar e precisou de um ano para voltar a andar. Um descolamento de retina, causado por citomegalovírus, tirou-lhe parte da visão -até hoje, enxerga muito mal. Nunca mais largou o coquetel e, depois de enfrentar seis anos de efeitos colaterais, como uma diarreia acentuada, vive sem eles.
Também é mais tranquilo em relação à sua condição. "Quase perdi a vida e, depois que a ganhei de volta, vi que o HIV faz parte dela. Não tenho mais vontade nem motivo para negar isso."
Os períodos cíclicos de depressão também se tornaram mais leves. "Redescobri o rumo, o privilégio de poder continuar a viver."
No auge da juventude, Hugo chegou a passar um ano inteiro "assexuado", como diz. Para os parceiros eventuais, não revelou que tinha o vírus. Enquanto a aparência e o estado clínico permitiram, continuou a trabalhar. No fim da década de 90, depois da internação, pediu a aposentadoria.
Entre a doença e o retiro, contou com o apoio financeiro de parentes. "Sou uma exceção daquele tempo, porque as pessoas eram abandonadas pela família, pelo trabalho, e nada disso aconteceu comigo. Meu autopreconceito é que foi muito forte. Eu já era rotulado por ser HOMOSSEXUAL, e ser rotulado também de portador de "câncer gay" era demais."
Hugo acha que esse panorama não mudou completamente. "As pessoas que sabem de um heterossexual portador de HIV sempre questionam se, em algum momento, ele não foi HOMOSSEXUAL. A orientação sexual sempre permeia pelo lado negativo essa questão."
Na organização onde trabalha voluntariamente há mais de uma década dando apoio a soropositivos, ainda ouve histórias como as de 25 anos atrás. "Tivemos conquistas, mas há hoje um discurso muito mentiroso, porque não pega bem falar que AIDS é um nojo. Mas continuo ouvindo relatos de gente que separa copos, que a família manda embora."
O infectologista Esper Kallas faz coro. "Melhorou, mas ainda existe preconceito. A infecção eclodiu principalmente em homens que fazem sexo com homens e em usuários de drogas. Isso trouxe uma reação social muito intensa, que tentamos apagar até hoje."
25 anos sem pisar no hospital
Entre a notificação dos primeiros casos de AIDS, em 1981, e o estabelecimento do agente transmissor da doença passaram-se anos. Foi em 1985, nesse cenário de incerteza, medo e preconceito, quando a doença era conhecida por "peste gay" e "câncer gay", que o comerciário José Araújo, então com 28 anos, decidiu fazer o teste.
Certo de que estaria a salvo da doença, um mês depois do exame recebeu a sentença: era SOROPOSITIVO. "O impacto foi muito forte porque eu estava fora do grupo de risco. O fator principal era ter se relacionado com algum estrangeiro, coisa que eu não tinha feito."
Quando o médico disse que ele tinha dois anos pela frente antes de desenvolver a doença, a sensação foi de alívio. "Para mim, era muito tempo. Saí feliz com a notícia."
Cercados de estigma e preconceitos, muitos soropositivos preferiam não revelar sua condição, a não ser para poucos familiares. "Todo mundo escondia, era um sofrimento muito solitário. Eu me afastei dos amigos porque tinha medo de deixá-los. O medo do preconceito era assustador."
O tempo foi passando e Araújo continuou mantendo segredo de sua condição. "Fiquei cinco anos abstêmio e, depois, voltei a fazer sexo. Mas era sexo com culpa, com medo de transmitir. E de gostar de alguém e isso não dar certo", afirma.
Embora vivesse com boa saúde, a doença parecia sempre à espreita. Em
Naquela época, começou a fazer parte do GIV - Grupo de Incentivo à Vida, uma associação pioneira de ajuda mútua a pessoas que vivem com o vírus. Foi também no início dos anos 90 que sua família soube de sua doença, pela televisão. "Um programa ia debater a questão e não encontrava portadores para falar. Fui cruel com a minha família: pedi que todos assistissem e disse que ia discutir economia. Foi a forma que achei de falar, mas fui irresponsável", reconhece.
Pouco depois que os exames de carga viral e de contagem de CD4 tornaram-se disponíveis, Araújo começou a tomar o coquetel. Dos nove comprimidos diários de 1998, hoje restam apenas cinco.
Com a morte à espreita, Araújo não investiu na carreira e passou anos vivendo de bicos. Acabou se dedicando, primeiro no GIV, depois na ONG Espaço de Prevenção e Atenção Humanizada, no Campo Limpo, zona sul de São Paulo, a dar apoio a outros portadores. "As pessoas que eu ajudei a cuidar me deram um sopro de vida. Para mim foi fantástico."
Aos 52 anos, prestes a completar 25 anos com o vírus e com a carga viral indetectável há quatro, faz planos como se fosse viver eternamente. "Preciso acreditar nisso, mas vivo intensamente o dia de hoje."
Fonte: Folha de S.Paulo
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Em fevereiro deste ano, a Agência de Notícias da AIDS produziu reportagem repercutindo estudos apresentados na 17ª Conferência de Retrovírus e Infecções Oportunistas (CROI), realizada nos EUA, que demonstraram que soropositivos podem ter uma expectativa de vida igual à das pessoas que não vivem com HIV, desde que cuidem da saúde.
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