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domingo, 28 de outubro de 2012

O Brasil e os compromissos internacionais em AIDS

O Brasil e os compromissos internacionais em AIDS
Pedro Chequer
Coordenador do UNAIDS no Brasil


O Sistema Único de Saude, estabelecido com base na Constituição de 1988, que define a saúde como um direito do cidadão e dever do Estado e tem seu marco de regulamentação na Lei 8080/1990 que dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e define sua estrutura política e atribuições de seus diversos níveis, sem dúvida alguma foi o arcabouço que permitiu ao Brasil estabelecer com qualidade e competência o programa de acesso ao tratamento da infecção pelo HIV e da aids. Os primeiros passos de sua implantação em 1996, sem qualquer dúvida, não teria sido possível sem os princípios e estrutura dos SUS. Devemos ter claro, todavia, que apesar do princípio constitucional do direito à saude, a operacionalização desse direito nas mais diversas áreas da saúde, em que pese os avanços obtidos, ainda apresenta importantes lacunas e carece de mecanismos mais consistentes para sua efetivação plena. A garantia, por exemplo, do acesso gratuito aos antirretrovirais só foi possível em sua plenitude, por intermédio da Lei 9313/96, projeto de autoria do Senador Jose Sarney, aprovado pelo Senado Federal e sancionado pelo presidente Fernando Henrique Cardoso, apesar das restrições de caráter econômico trazidas à discussão por determinados setores do próprio Governo. A existência do SUS e a garantia constitucional, ainda que necessárias, não seriam suficientes para assegurar esse direito - Haja vista uma série de problemas de saúde que enfrentam obstáculos para seu atendimento segundo os parâmetros do acesso universal por direito constitucional e como dever do Estado.

O estabelecimento do tratamento antirretroviral gratuito, sobre o qual não pretendemos aprofundar a discussão nesta reflexão, teve sua origem na pressão social e na fundamentação científica, ao que se soma a sensibilidade política que fez converter um anseio social legítimo em uma prática do Estado; esta pratica de modo ininterrupto, tem se mantido, independentemente de seu custo financeiro, ainda que apresente custo-benefício inquestionável – uma fonte de poupança de recurso público, tanto no campo da saude como da previdência, sem entrar no mérito de aspectos outros de relevância extrema.

Ao longo desse período, a aquisição dos medicamentos destinados a aids permaneceu centralizada - decisão estabelecida em 1996 e que tem representado importante fator de economicidade e garantia de um abastecimento continuado. Ao lado desse parâmetro normativo, estabeleceu-se, também, que a aquisição de medicamentos para agravos associados à infecção pelo HIV seria de responsabilidade de estados e municípios; lamentavelmente, apesar da pactuação estabelecida, seu pleno cumprimento, com honrosas exceções, tem apresentado importantes lacunas de implementação.  Ao tempo em que se manteve centralizada a aquisição de antirretrovirais, outros aportes do governo federal foram descentralizados, entre eles, parte dos recursos destinados ao enfrentamento da epidemia da aids. “Instituída em dezembro de 2002, a Política de Incentivo consiste em financiar Unidades Prestadoras de Serviço, por meio de mecanismos regulares do SUS. É a transferência fundo a fundo - repasse regular e programado de recursos diretamente do Fundo Nacional de Saúde para estados e municípios, independentemente de convênio ou instrumento similar”, é o que reza o Portal do Departamento de Aids, de modo bastante didático e objetivo.

Esta nova estratégia, correta do ponto de vista político e da necessidade de maior autonomia a estados e municípios, substituindo a antiga modalidade de convênios, esbarrou-se na dificuldade da utilização dos recursos em tempo oportuno, chegando em algumas situações a níveis inaceitáveis do pondo de vista do uso adequado do recurso público, quando se constata acúmulo de anos em recursos financeiros depositados nas contas bancárias sem a utilização em tempo hábil, não pela inexistência de planos e programas para sua execução ou mobilização da equipe técnica, mas pela dificuldade da burocracia e baixo nível de priorização política, obstáculos que, com raras exceções, também se acumularam e se agravaram ao longo do tempo. 

Preocupa-nos recentes informações sobre a pulverização do recurso destinado a aids  decorrente da política de incentivo e acumulado até dezembro de 2011. De modo algum entendemos como aceitável do ponto de vista ético, a existência de recursos sem utilização quando as necessidades são prementes e se agravam tanto na área de assistência, quanto de prevenção, e particularmente nesta. Aí estão também incluídos os recursos destinados às organizações da sociedade civil, que por todo o país fecham as portas, mesmo as mais tradicionais, pela carência de recursos para seu funcionamento.

Vale registrar que a descentralização também incluiu o aporte de recursos ao movimento social para suas ações em caráter complementar e de apoio as ações do Estado, em diversas áreas onde somente ele é capaz de atuar com competência, estabelecendo ambiente de adequado acolhimento, além do exercício essencial de controle social, indispensável num regime democrático e transparente.

Diante da inadmissibilidade da situação atual, uma medida de caráter político poderia ter sido tomada, como por exemplo, o estabelecimento de parâmetros administrativos que viabilizassem a utilização do recurso por estados e municípios segundo as Programações de Ações e Metas aprovadas pelos conselhos municipais e estaduais com a celeridade necessária e utilização da medida que ora se anuncia em caso de inadimplência num determinado período a ser consensuado.

Preocupa-nos mais ainda, que ao lado dessa medida, outra poderá ser adotada: a interrupção do incentivo destinado a aids a partir de janeiro de 2014. Esta medida certamente reflete o caráter de prioridade que progressivamente vem o Brasil dando ao controle da epidemia, que passa cada vez mais a ser visto como mais um problema de saúde pública, no entendimento de que os avanços obtidos são suficientes; esta percepção contraria de modo concreto o entendimento que se tem sobre a urgente necessidade de rever e ampliar estratégias de ação tendo em vista as grandes lacunas observadas, às quais se somam a inequidade regional: a epidemia continua crescendo no Norte e Nordeste do país, do ponto de vista de sua incidência e taxas de mortalidade específica e a região Sul apresenta situação epidemiológica preocupante.

Revendo os compromissos assumidos pelo Brasil nas Assembleias Gerais das Nações Unidas e particularmente na última Assembleia, este seria o momento de se redobrar esforços e alocar mais recursos específicos com vistas a garantir o cumprimento da meta de acesso universal ao tratamento, prevenção e cuidados até 2015, ao que se somariam, obviamente, medidas que garantissem a celeridade e pertinência da aplicação dos recursos.

Em que pese os avanços, o Brasil não se encontra entre os países considerados de cobertura universal, segundo o último relatório da OMS/UNAIDS, em função do grande numero de cidadãos soropositivos para o HIV que, por não terem sido diagnosticados, desconhecem seu status e não estão sob tratamento.

Apesar do entendimento distinto, talvez por equívoco conceitual, também o acesso não é universal. Suficiente visitar o semiárido nordestino e a região Norte do país (e não apenas estes) para se constatar a carência de serviços que possibilitem o acesso a testagem e tratamento antirretroviral. Ora, se não há testagem ou disponibilidade local de medicamento ou se encontram a dias de viagem para que se possa aceder aos serviços, não podemos considera-los como acessíveis.  Todavia, em função de políticas públicas que anteriormente registramos, a disponibilidade de medicamentos tem sido assegurada pelo Ministério da Saúde em sua integralidade do ponto de vista orçamentário e logístico, com avanços excepcionais nos últimos doze meses no que concerne a continuidade no seu suprimento, sem registro de qualquer interrupção. 

Devemos ter claro que para cumprir os compromissos internacionalmente firmados pelo Brasil, o adequado aporte de recursos e sua utilização em prioridades epidemiologicamente estabelecidas é aspecto essencial a ser observado; a isto se deve somar a construção de estratégias inovadoras e mobilizadoras em âmbito nacional,  que envolvam os níveis políticos decisórios em todas instancias pertinentes e se repliquem em cada nível de governo de modo a ser implementado segundo a realidade local da epidemia. 

O UNAIDS enquanto instituição parceira, comprometida com o pleno alcance das metas globais em relação ao enfretamento da epidemia, para a qual a contribuição do Brasil se faz imprescindível, vem registrar sua preocupação e externar seu apelo para que alternativas sejam postas em práticas, na expectativa de que mais uma vez, o país volte a se despontar como referência de políticas públicas na área da AIDS.



O SUS e Epidemia da AIDS - Pedro Chequer.pdf
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