28/10/2010 - 08:35 - Atualizado em 28/10/2010 - 08:35
Ciência ou propaganda?
Onde há interesses comerciais haverá sempre motivo para desconfiar
Francine Lima
Francine Lima
Repórter de ÉPOCA, escreve às quintas-feiras sobre a busca da boa forma física
Repórter de ÉPOCA, escreve às quintas-feiras sobre a busca da boa forma física
Você sabe como são as relações dos profissionais de saúde com a indústria?
Vamos pensar num dentista. Qual creme dental ele vai recomendar aos seus pacientes se não souber exatamente qual o efeito dos cremes dentais disponíveis no mercado? Antes de recomendar um produto, ele precisa conhecê-lo. E a indústria ajuda o dentista nessa tarefa. Envia um vendedor técnico ao seu consultório, que mostra folhetos das mais novas linhas de produtos, apresenta suas vantagens e entrega algumas amostras grátis. Se for convencido das qualidades do tal creme dental, o dentista terá motivos para recomendá-lo a seus pacientes.
Imagine qual é a importância, para a indústria, de convencer os profissionais de saúde de que seus produtos fazem bem e merecem ser indicados a seus pacientes. Não é à toa que as propagandas na televisão vivem usando pessoas vestidas de branco, fazendo o papel de médicos ou dentistas, para transmitir a sensação de que possuem o aval dos especialistas. Essa credibilidade é fundamental para o negócio da saúde. Mas antes de afirmar na publicidade da TV que os profissionais recomendam aquele produto, a indústria precisa investir bastante numa publicidade anterior, direcionada especialmente a esses profissionais.
Além das visitas nos consultórios, a indústria de produtos com alegações para a saúde (incluem-se nessa lista dentais, medicamentos, alimentos e bebidas) também usa eventos para chamar a atenção dos profissionais. Os congressos e feiras são verdadeiras vitrines para as empresas, que têm acesso direto e simultâneo a milhares de profissionais atentos às novidades. A diferença entre fazer propaganda para os telespectadores leigos e promover seus produtos para profissionais especializados é que estes entendem o suficiente do assunto para saber se o que estão vendendo vale a pena ou não. Nós, os leigos, dependemos deles, os bons profissionais, para saber se a propaganda é verdadeira ou não.
Na semana passada, compareci a um evento de uma grande fabricante multinacional de alimentos, promovido especialmente para nutricionistas. Não era uma feira nem um congresso. Tampouco era pura propaganda. Era um dia inteiro de palestras ministradas por pesquisadores da área de nutrição, com temas como saúde cardiovascular, os efeitos de diferentes tipos de gordura sobre a saúde e a opinião do consumidor sobre determinados tipos de alimentos. Havia palestrantes brasileiros e estrangeiros, escolhidos a dedo de acordo com suas especialidades. A empresa queria oferecer informação científica nova e útil para as nutricionistas aproveitarem eu seus consultórios. De graça, com direito a almoço, café e lanchinho – com produtos da empresa.
Segundo o que ouvi de algumas participantes, nada era totalmente inédito para a plateia, mas alguns palestrantes eram figuras conhecidas e admiradas que certamente teriam algo interessante a acrescentar. Também me disseram que algumas apresentações trouxeram dados novos e relevantes de pesquisas em andamento, ainda não publicados. De que outra maneira todas essas profissionais poderiam ter acesso a informação boa e inédita, de graça e sem precisar viajar para um congresso fora do estado ou do país? Participar do evento era de fato uma oportunidade de se atualizar e, claro, de reencontrar colegas e reforçar o networking.
A empresa não escondia que estava ali para defender seus produtos. A programação do evento era toda montada em torno deles, com estudos sempre relacionados aos benefícios que seus produtos supostamente oferecem. E a plateia, diplomada e dona de currículos admiráveis, não ouvia ingenuamente. Uma nutricionista com quem almocei disse que é preciso encarar com cautela o conjunto de evidências apresentadas pelos estudos escolhidos pela empresa, justamente porque há interesses comerciais envolvidos.
Sobre os benefícios da soja, por exemplo. Já comemos muita soja. A carne vem da soja, e um monte de aditivos nos alimentos industrializados também. Talvez, a nutricionista ponderou, não seja o caso de incentivar um consumo maior ainda de soja.
Também foi reforçada, nas palestras, a importância de substituir as gorduras trans por gorduras vegetais mais saudáveis (como as presentes em produtos da empresa que promoveu o evento). Mas, segundo a nutricionista do almoço, também existem estudos sérios mostrando que a gordura trans não faz mal. Em quem acreditar?
Certezas científicas parecem ser raras no mundo dos alimentos. Ainda mais quando as novas “verdades” ameaçam mercados consolidados, como o da manteiga, da margarina, do leite de vaca. Empresa nenhuma quer perder mercado, e todas querem que seus produtos sejam acreditados como os melhores para o prazer e para a saúde dos consumidores.
Saiba mais
Dizem que a propaganda é a alma do negócio. No caso dos novos alimentos, a ciência também é. Para nós, consumidores leigos, o difícil é conseguir distinguir uma da outra.
(Francine Lima escreve às quinta-feiras)
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