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quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

Série de reportagens

Jornal Brasil Econômico publica série de reportagens sobre o enfrentamento da aids no país

Referência contra aids, Brasil expande atuação

Brasil Econômico

18/02/2010

Expansão contra a aids

Referência mundial para o tratamento da doença, programa nacional é estendido para países da África. Em um dos projetos, governo doará R$ 13,6 milhões para uma fábrica de antirretrovirais em Moçambique.

Programa nacional, que reduziu a infecção em cidades com mais de 500 mil habitantes, é replicado em países africanos e atrai estrangeiros para o país

Marina Gomara

mgomara@brasileconomico.com.br

O Brasil é referência mundial no futebol, e também no programa de combate a aids. Pelo menos, é isso o que contam os profissionais da saúde que participam de conferências e palestras internacionais sobre o tema. A projeção tem seu porquê. Na década de 1990, enquanto todos os países ainda discutiam o que fazer com os portadores do vírus HIV - uma vez que os primeiros casos de aids começaram a surgir no início da década de 1980 - o Brasil não só propôs como implementou um atendimento universal às pessoas infectadas.

"Enquanto o resto do mundo discutia se deveria tratar ou prevenir a doença, o Brasil foi o primeiro país a tomar uma ação concreta ao acesso de retroviral, em novembro de 1996. Na época, o governo brasileiro foi muito criticado por cientistas e até pelo Banco Mundial, que diziam que era insensato dar tratamento aos doentes, porque isso poderia gerar uma grande massa de pessoas resistentes a terapias, o que isso seria um grande fracasso" conta Pedro Chequer, coordenador do programa das Nações Unidas para a aids (UNaids) no Brasil, e ex-diretor do Programa Nacional de aids do Ministério da Saúde, de 1996 a 2000 (durante o governo de Fernando Henrique Cardoso) e de 2004 a 2005 (no governo Lula).

A jornalista Roseli Tardelli, idealizadora do site www.agenciaaids.com.br, lembra como foi difícil ajudar o irmão portador do vírus HIV, morto em 1994. "Fomos a primeira família que brigou na justiça para que os convênios médicos atendessem meu irmão. Ganhamos em primeira instância, mas era um momento de combate a aids muito difícil: não tinha remédio, atendimento ou uma resposta mais decente para a doença", conta.

O programa de combate a aids foi bem sucedido por ter contado com a participação de diversos agentes da sociedade. Não houve só mobilização nas diferentes esferas políticas, mas a academia e os ativistas também foram fundamentais para garantir a disponibilização dos medicamentos. "Havia uma mobilização, uma demanda social muito grande, uma sociedade civil organizada demandando que houvesse uma linha para atendimento. A sociedade controlava, exigia seus direitos e se faltassem remédios havia passeata e protestos e isso saía nos jornais" lembra Chequer.

Mas tamanho barulho seria ineficaz se o Brasil não tivesse acumulado ao longo dos anos conhecimento técnico e científico para lançar um programa nacional desse porte. Isso foi possível com o Instituto de Infectolo-gia Emílio Ribas, em São Paulo, o hospital do Fundão da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), entre outras instituições, que conseguiram capacitar médicos e profissionais da área.

"O Brasil aprendeu o jeito correto de tratar o doente crônico. Há, hoje, uma atividade multisse-torial, multidisciplinar para tratar a aids. Criaram-se núcleos em todo o país muito bem referenda-

dos, com expertises muito bem definidas", explica o infectologis-ta e diretor do Emílio Ribas, David Uip, um dos maiores especialistas de aids e o primeiro a tratar pacientes soropositivos no país (leia entrevista na página 6).

Para o diretor da Unaids no Brasil, a existência de um Sistema Único de Saúde (SUS) também foi essencial para que o país conseguisse estabilizar a epidemia da aids, com cerca de 33 mil a 35 mil casos por ano, segundo dados do Ministério da Saúde.

Nem tudo está perfeito, é verdade. Enquanto os grandes centros urbanos brasileiros - municípios com mais de 500 mil habitantes - registraram, entre 1997 e 2007, um decréscimo da taxa de incidência (número de casos de aids a cada 100 mil pessoas) de 32,3 para 27,4, nos municípios com menos de 50 mil habitantes, a taxa de incidência passou de 4,4 para 8,2 no mesmo período.

"Ainda temos muitos desafios. O HIV nos grandes centros está mais assistido do que no interior. Temos que ter uma resposta mais equilibrada para outros espaços do país, uma distribuição global e para isso acho que tínhamos que regionalizar a gestão do programa para conseguirmos otimizá-lo", defende Rosely Tardelli. Para ela, a campanha de prevenção, por exemplo, não poderia ser nacional, mas deveria abordar as diferentes realidades e modos de vida que há no país.

TERAPIA EFICAZ

Contra a aids, há hoje uma atividade multissetorial e multidisciplinar, com núcleos referendados em todo o país.

A taxa de incidência caiu de 32,3 para 27,4 infectados por 100 mil habitantes nos grandes centros urbanos.

País exporta expertise para tratar a doença

Em Moçambique, 16% da população está infectada

Governo brasileiro doará R$ 13,6 milhões para uma fábrica de antirretrovirais em Moçambique

Tendo reunido experiência no combate e prevenção da aids há mais de quinze anos e conseguido conter o avanço da doença no país, o governo brasileiro e algumas iniciativas privadas estão ajudando o continente africano a dar uma solução para o problema - uma das áreas no planeta onde o número de casos mais cresce. Angola e Moçambique tem sido os principais alvos destes programas, por serem países de língua portuguesa.

"O fato de falarmos a mesma língua vira um grande atrativo para transferência do nosso conhecimento para esses países. Eles precisam da nossa mão de obra qualificada e mais experiente", afirma o jornalista Lucas Bonanno, que morou em Moçambique e trabalha para a www.agenciaaids.com.br. Ele conta que até 1992 muitos países da África não estavam preocupados com o combate da aids, já que havia uma questão mais importante a ser enfrentada: a guerra civil.

Com o sucesso que teve no Brasil, a agência, dirigida pela também jornalista Roseli Tar-delli, foi chamada para ser estendida para Moçambique, onde está desde agosto com o www.agenciasida.co.mz. Ao todo, por ano, Roseli calcula que vá gastar US$ 120 mil no Brasil e em Moçambique com os sites de notícias. O dinheiro vem, principalmente, da Unaids, Unicef e da Fiocruz.

O governo brasileiro também vai doar para Moçambique, ao todo, R$ 13,6 milhões para a instalação de uma fábrica de antirretrovirais, que deverá estar em funcionamento até o fim do ano. O dinheiro será usado para comprar equipamentos e capacitar profissionais da saúde. Os remédios contra a aids produzidos na unidade serão enviados para outros países do continente, como afirmou recentemente o ministro da Saúde, José Gomes Temporão. Em Moçambique 16% da população (ou 1,6 milhão de pessoas) está infectados pelo HIV. Também há 670 mil crianças órfãs porque perderam os pais, vítimas da doença.

Desde 2004, com o aval do Itamaraty, o Brasil também passou a enviar medicamentos - contando com o transporte oferecido pela Unaids e o Unicef - para países como Cabo Verde e São Tomé e Príncipe. A iniciativa é do atual coordenador da Unaids no Brasil, Pedro Chequer, que na época era o diretor do Programa Nacional de DST/ Aids no Brasil.

Ensinamentos

Outra iniciativa - desta vez privada - na África é coordenada pelo infectologista David Uip, diretor do Instituto Emílio Ribas. Um grupo de médicos, enfermeiros e gestores toca, desde 2002, projetos para ajudar no controle da aids em Angola, com a parceria do ministério da Saúde do país. "O nosso carro-chefe é o programa de prevenção da transmissão de aids de mãe para filho durante o parto. Também temos um trabalho de biossegurança para melhorar o atendimento dos profissionais da saúde. Nós ensinamos como usar instrumentos descartáveis, além de outras boas práticas médicas" explica Uip. Ele, no entanto, não tem ideia de quanto já foi gasto com os dois projetos.

Não é por falta de recursos que muitos países africanos têm dificuldade em combater a aids. Em Moçambique, por exemplo, 40% do PIB (de US$ 10 bilhões) vem de doações, sendo que 12% são só para a doença. O grande problema é a má administração e a corrupção que impedem, muitas vezes, o dinheiro de chegar às vítimas. M.G.

Há um longo caminho a percorrer. A mudança real não ocorreu

ENTREVISTA DAVID UIP / Infectologista e diretor do Hospital Emílio Ribas

A prevenção da aids só virá com educação, diz o infectologista. Há casos novos todos os dias

O infectologista David Uip trabalha com pacientes soropositi-vos desde 1982. Ficou tão conhecido que até mesmo estrangeiros - angolanos, por exemplo - vêm ao Brasil buscar tratamento com ele. Mesmo tendo dedicado todos esses anos ao combate à aids, ele diz ainda não ter achado a forma certa de fazer a prevenção da doença.

Como o senhor vê o atual controle da aids no Brasil?

O Brasil tem um bom programa de disponibilização de medicamentos a todos que precisam. Mas programa de prevenção, acho que o mundo como um todo ainda não arrumou como fazer esse trabalho. Mesmo nos países desenvolvidos, volta e meia há um escape e uma volta do aumento de casos da doença. Incentivar as pessoas a mudar hábitos e comportamentos é um desafio enorme. Acredito que a prevenção virá só na hora em que tivermos vacina, que ainda vai demorar muito a chegar. O que não quer dizer que devemos desistir do preservativo. A prevenção virá com a educação. Família e escola. Isso é um trabalho a quatro mãos.

O que o senhor percebe no consultório?

Se observarmos a ponta do problema com quem faz atendimentos como eu, percebemos casos novos todos os dias. Mas as formas de contaminação continuam as mesmas, e o comportamento continua o mesmo. Às vezes, muda-se um pouquinho daqui, um pouquinho de outro lado, mas, ao meu ver, a mudança real não ocorreu.

Como está a pesquisa nessa área no país?

O Brasil basicamente faz pesquisa com ensaios clínicos, onde se testa a eficácia de remédios e de produtos feitos em outros países. Temos hoje um bom knowhow no setor privado de medicamentos e temos experiência como um dos melhores do mundo nisso. Mas temos muito pouca pesquisa básica, aquela de bancada, na área de aids. Ainda há um longo caminho a percorrer. Essa pesquisa é importante para entender melhor a imunopatogenia e a busca de novas moléculas.

Quantas pessoas estão envolvidas no projeto que o senhor dirige em Angola?

Só de brasileiros, temos mais de 30 morando na Angola, fora os angolanos. Mas também há coordenadores de cada projeto que vão e voltam para o Brasil. A maioria é da USP e do Instituto Emílio Ribas. Além do projeto para reduzir a transmissão da aids de mãe para filho e também para ensinar profissionais do país as boas práticas médicas, estamos discutindo com o ministério da Saúde angolano a implantação de um grande programa chamado "Sangue Seguro". O objetivo é orientar como fazer a triagem na hora da doação e como conservar o sangue.

Há resultados práticos do que foi feito lá?

Os avanços foram enormes.

Quando cheguei em Angola, abri mão do parto por cesárea. Nós não fazíamos porque era um procedimento de risco eminente não só de infecção, mas também de morte. E após esses mais de oito anos no país, conseguimos mudar esse quatro radicalmente.

Existe planos de projetos em outros países?

Tive muito convites, mas uma das coisas que imponho como limite é a língua. Na África há muitos países que falam francês, então fazer um trabalho cuja parte educativa é enorme sem o domínio da língua é muito difícil. Para se ter ideia, só para preparar esse grupo para atuar junto com as autoridades angolanas levou mais de um ano. Já discutimos muito com o Cabo Verde e vamos também conversar com o governo de Moçambique em breve sobre parcerias. Mas há algumas coisas que são claras: tenho um projeto de sucesso em Angola. Não graças a mim, mas graças a todo mundo, principalmente aos angolanos. Seioquedácertoeoquenão dá. E parte deste sucesso tem a ver com a facilidade da língua e também com a presença física do meu grupo que mora lá. Não adianta ficar falando à distância. É preciso estar lá integrado à sociedade de Angola.

"Em Angola, parte do sucesso tem a ver com a facilidade da língua e também com a presença física do meu grupo que mora lá. Não adianta ficar falando a distância"

Saúde gratuita e universal atrai estrangeiros

Muitos chegam a viajar até duas vezes por ano para o Brasil em busca de exames e medicamentos

Regiane de Oliveira

roliveira@brasileconomico.com.br

"Não tem sido fácil para mim ter de viajar anualmente e custear todas as despesas, bilhetes de passagem, estadia e alimentação - graças a Deus o meu tratamento no Brasil é gratuito. Por amor a vida a gente faz o possível até onde der". O desabafo é da angolana Maria Henda Gomes, uma das muitas pacientes estrangeiras que vêm ao país todo ano, às vezes, mais de uma vez ao ano, para conseguir o tratamento gratuito contra a aids. Ela é acompanhada pela médica sanitarista Maria Clara Gianna, coordenadora do Programa Estadual DST/Aids-SP, que desde 1988 integra a equipe de vigilância epidemiológica do Estado de São Paulo.

"O número de pessoas que vem ao país é pequeno. Em São Paulo, temos 816 estrangeiros registrados de um total de 70 mil pessoas em atendimento nas cerca de 165 unidades estaduais e municipais", afirma.

Em geral, os pacientes que vêm ao Brasil de locais mais distantes, como África, têm posição de destaque em seus países de origem. "São militantes da sociedade civil, pessoas do governo, muitos apoiados por entidades não governamentais, como a Unaids (Órgão das Nações Unidas para o HIV/Aids)", explica. No entanto, o maior público ainda é dos países Ibéricos e da América Latina. Do total de pacientes estrangeiros matriculados no Centro de Treinamento DST/Aids de São Paulo, 13,8% são de Portugal e 13,6% do Chile. Segundo Maria Clara, trata-se em sua maioria de pacientes expatriados. "Muitos, principalmente dos países vizinhos, costumam atravessar a fronteira para fazer o atendimento no Brasil."

Maria Clara afirma que, de acordo com dados da Organização Mundial de Saúde, 0,6% da população do Brasil tem aids. Em Angola, a doença atinge 6% dos habitantes. Em Moçambique, o número é ainda maior, 15%. Esses países têm programas de combate à aids, mas sem o padrão de eficiência do brasileiro.

O que atrai estes estrangeiros é uma realidade ainda difícil de ser encontrada em outros países, ao menos na prática: saúde é um direito universal no Brasil, o que pressupõem o atendimento não só a brasileiros ou residentes no país. "A redemocratização do Brasil em 1988 permitiu isso. Saúde como direito não existe em outros países", garante Maria Clara. Países como China, Peru, Indonésia, Timor Leste, Angola e Moçambique estão na lista de trabalho da médica sanitarista, que atua na capacitação de especialistas de outros países para tratar a aids.

Maria Clara garante que o atendimento à estrangeiros não tem impacto no sistema de saúde nacional. "A diferença está na vida das pessoas que conseguiram chegar até aqui", afirma. No entanto, frequentemente o programa é alvo de críticas. "Há quem acredite que os estrangeiros têm tratamento diferenciado e mesmo que a divulgação de nosso programa gratuito possa aumentar o número de estrangeiros, mas não é verdade."

Os estrangeiros que fazem acompanhamento no país recebem medicamentos para cerca de dois ou três meses. "Não é o ideal, mas é o que podemos fazer, pois é necessário o acompanhamento", afirma.

O que conquista os estrangeiros é uma realidade ainda difícil de ser encontrada em outros países, ao menos na prática: saúde é um direito universal no Brasil, o que pressupõe o atendimento não só a brasileiros ou residentes no país
Cortesia Clipping Bem Fam(18/02/0100

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